Jornal Correio Braziliense

Ciência e Saúde

Debate sobre riscos cardiovasculares por consumo de glúten divide opiniões

Estudo norte-americano não encontra associação entre consumo de glúten e risco cardiovascular em pessoas saudáveis. O debate sobre essa proteína vegetal, porém, está longe de acabar: há quem defenda sua exclusão total do cardápio da população em geral



Ninguém prestava muita atenção nele. Mas foi só o cardiologista americano William Davis lançar, há seis anos, o livro Barriga de trigo, para o glúten se transformar em vilão. Essa proteína vegetal, que não pode ser consumida por pessoas que têm doença celíaca ou algum grau de intolerância a ela, passou a ser evitada, também, por quem é saudável. A justificativa, endossada por alguns especialistas e combatida por outros, é a de que a substância seria tóxica ao organismo e poderia estar por trás de diversas doenças inflamatórias. Por sua vez, há quem argumente o contrário: a retirada do glúten por não alérgicos favoreceria problemas de saúde, como distúrbios no controle glicêmico.

[SAIBAMAIS]Na semana passada, um artigo científico publicado na revista British Medical Journal alertou que indivíduos saudáveis não têm por que tirar o glúten da dieta. O trabalho reúne dados de 64.714 mulheres e 45.303 profissionais de saúde norte-americanos, que completaram um questionário alimentar detalhado em 1986, atualizando os dados a cada quatro anos, até 2010. Eles foram divididos em cinco categorias, de acordo com o nível de consumo estimado do glúten. O foco da pesquisa foi procurar associação entre o consumo da substância e o risco de doenças coronarianas, explicou, em nota, Benjamin Leb-wohl, professor de medicina e epidemiologia do Centro Médico da Universidade de Columbia e principal autor do artigo.

Em celíacos, o glúten desencadeia inflamações que aumentam a probabilidade de doenças cardíacas, algo reduzido quando a proteína do trigo é cortada do cardápio. Por isso, ao longo de 26 anos, os participantes foram monitorados quanto ao desenvolvimento de problemas cardiovasculares e ao consumo da substância. Depois de ajustar fatores de risco conhecidos, não se encontrou qualquer associação. ;Os livros populares de dieta, baseados em evidências anedóticas e circunstanciais, divulgaram a ideia de que uma dieta com baixo consumo de glúten é saudável para qualquer um. Nosso estudo mostra que a restrição da proteína não tem nenhum benefício para pessoas sem doença celíaca. Na verdade, isso pode até causar algum perigo, pois a dieta de restrição ao glúten é pobre em grãos integrais, sendo que esses grãos parecem ter um efeito protetor contra doenças cardíacas;, observa Leb-wohl, cujo estudo foi financiado pela Associação Americana Gastroenterológica.

A nutricionista clínica Carolina Sartori, de Brasília, explica que a guerra ao glúten se popularizou com o best-seller de William Davis, que apresentou diversas pesquisas sobre os malefícios da proteína e se tornou uma bíblia de celebridades. Contudo, ela destaca que o cardiologista usou dados de estudos feitos com celíacos, e não com a população que não sofre desse problema. ;No Barriga de trigo, ele atribuiu o glúten a hipotiroidismo e infertilidade, entre outros problemas. Acontece que toda a referência científica foram estudos com pessoas celíacas;, alerta Carolina, uma expert no assunto, não só pela formação, mas por ser, ela mesma, celíaca.

De acordo com a nutricionista, muitas pessoas saudáveis que retiraram o glúten da dieta passaram a relatar melhora na saúde, especialmente quanto à redução da sensação de inchaço. Mas ela esclarece que isso não tem relação com o glúten. ;O que acontece é que a maioria da população tem disbiose, que é o desequilíbrio da flora intestinal, devido ao uso de antibiótico ou a diarreias;, explica. Dessa forma, ficam com menos bactérias ;boas;, e mais ;ruins;. Essas últimas se alimentam de fibras e carboidratos, nutrientes praticamente cortados da alimentação de quem não consome glúten. Por isso, de fato, o inchaço provocado por gases diminui. Mas Carolina destaca que o problema da disbiose pode ser resolvido com a prescrição de probióticos, por médicos.

Diagnóstico

A nutricionista Vanderli Marchiri, da Câmara Técnica do Conselho Regional de Nutrição da 3; Região, alerta que, quando uma pessoa retira o glúten da dieta e sente melhora em determinados sintomas, é possível que seja celíaca ou intolerante sem saber e, por isso, deve fazer uma investigação médica detalhada. ;Quaisquer sintomas que desapareçam com a exclusão do glúten merece um diagnóstico correto de doença celíaca, sensibilidade não celíaca ou alergia ao trigo;, diz. ;Quando a pessoa não apresenta esses três problemas, não há justificativas reais para a retirada dessa proteína;, reforça. O CRN da 3; Região formulou um parecer técnico sobre o assunto, destacando que ;a recomendação indiscriminada para a restrição ao consumo de glúten não encontra, atualmente, respaldo na ciência da nutrição;. Os especialistas advertem, ainda, que, a exclusão do glúten da alimentação sem necessidade dificulta o diagnóstico de quem, de fato, é celíaco.

Melissa Alves Paiva Mendonça, 31 anos, sempre foi interessada por nutrição. Há dois anos, decidiu adotar a dieta paleolítica, que defende uma alimentação o mais próximo possível daquela de 10 a 15 mil anos atrás, antes da revolução agrícola. ;Os grãos são estranhos à nossa dieta. Antes da agricultura, não existia glúten. Essa é uma proteína sem valor nutricional;, acredita. Melissa, inclusive, cortou os grãos do cardápio de suas cachorrinhas, adeptas da alimentação natural, sem ração.

Ela diz que não acredita que a retirada do glúten possa provocar problemas de saúde. Para Melissa, o problema é quando se substitui o trigo por carboidratos simples. ;Tem gente que não consome glúten, mas se entope de arroz. Aí é um grande erro. Quem faz a dieta paleo lowcarb tem de comer verduras, oleaginosas, hortaliças, gorduras saudáveis, peixe e ovos;, diz. Entre os benefícios sentidos, ela relata melhora na sonolência, na retenção de líquidos, em dores que sentia nas costas e na sensação de inchaço.

O estudante de educação física Thiago Luiz Feitosa Ramos, 21 anos, sempre foi adepto de dietas para melhorar o rendimento dos treinos. Há dois meses, ele cortou o glúten, com orientação de um nutricionista. O jovem conta que, com isso, diminuiu o consumo de carboidratos, o que o ajudou a reduzir bastante gordura corporal. ;Mas vem a consequência, que é a dificuldade do dia a dia. É uma dieta fácil de seguir, mas o cansaço que se acumula é muito grande. O organismo começa a se adaptar a essa falta, mas, mesmo assim, continua difícil, porque você se sente sem energia;, conta.

A nutricionista Denise Madi Carreiro, autora do livro Glúten, toxicidade, reações e sintomas, defende a retirada do glúten da dieta, mesmo quando a pessoa não é celíaca nem intolerante. Ela diz que há estudos demonstrando a ação maléfica de peptídeos tóxicos do glúten no organismo, e cita os trabalhos de Alessio Fasano, professor da Universidade de Maryland e diretor do Centro de Pesquisa Celíaca da instituição. O médico investiga a sensibilidade ao glúten, condição na qual os exames para doença celíaca dão negativos, mas o paciente apresenta os mesmos sintomas de quem tem a enfermidade.

De acordo com Denise, um dos problemas é a qualidade do trigo consumido atualmente, que passou por diversas técnicas de hibridização.

Ponto crítico


SIM


; Denise Madi Carreiro


Em mais de 25 anos de prática clínica, sempre procurei relacionar a ação que os alimentos exercem no organismo aos sintomas e queixas apresentados pelos pacientes. O alto consumo de glúten nos últimos anos, associado ao empobrecimento do consumo de nutrientes essenciais para o funcionamento das nossas defesas naturais, acabaram por causar sintomas que hoje já são comprovadamente atribuídos ao glúten. Entre os principais, posso destacar os mais frequentes, como transtornos gastrointestinais; distúrbios neurocomportamentais, como cefaleias, hiperatividade física e mental, distúrbios de concentração, TEA (transtornos do espectro autista), alterações de humor, ansiedade, depressão, embotamento mental, distúrbios do sono, entre outros; dores musculares e articulares; adormecimento de braços e pernas; cistite intersticial, eczemas, pernas irrequietas, infecções urinárias, desequilíbrios de peso, infertilidade, resistência à insulina, má absorção de micronutrientes, e contribui também para o desencadeamento de doenças autoimunes em pessoas predispostas. Para muitas pessoas, a dieta sem glúten começou como mais um modismo, sem as substituições adequadas por outros carboidratos, mas assim mesmo as pessoas começaram a se sentir bem.

Nutricionista, autora do livro Glúten, toxicidade, reações e sintomas (Editora Paulo César Carreiro)


NÃO
; Priscila Farage


Para a população de forma geral, a dieta sem glúten pode implicar restrições desnecessárias e que acarretam prejuízos sociais e nutricionais. As versões de industrializados sem glúten costumam ter mais gordura e aditivos químicos em sua formulação para melhorar a textura e o sabor do produto. Além disso, são normalmente produzidos com farinha de arroz ou outros farináceos refinados que, assim como a farinha de trigo, são ricos em carboidrato simples, que levam ao ganho de peso e contribuem, em longo prazo e se consumidos em excesso, para alterações no controle glicêmico. Estamos passando por um momento de ;terrorismo nutricional;, em que vários alimentos são condenados, e isso está virando uma obsessão das pessoas. Precisamos resgatar o prazer pela comida. Não estou dizendo que devemos comer tudo o que quisermos em qualquer quantidade, mas uma dieta saudável não implica restrições radicais e abandono da cultura alimentar e culinária tradicional. Devemos comer comida de verdade, preparada a partir de alimentos frescos e naturais, e isso não significa excluir completamente os alimentos taxados como ;vilões;. A velha frase ;equilíbrio é tudo; é sempre válida.

Professora substituta do Departamento de Nutrição da Universidade de Brasília, membro da Associação dos Celíacos do Brasil (Acelbra/DF), sócia-fundadora do Na Cozinha Nutrição e Consultoria