Um grupo de pesquisadores brasileiros conseguiu confirmar a associação entre microcefalia e infecção pelo zika, o que reforça a possibilidade de uma epidemia dessa condição à medida que eclodirem novos surtos massivos da doença. Esta é a primeira vez no mundo em que a hipótese foi testada usando o chamado padrão ouro dos estudos científicos: a comparação entre bebês afetados e os controles, ou seja, os que nasceram sem o problema. No primeiro caso, 41% das crianças tiveram confirmação laboratorial de infecção pelo vírus. No segundo, não foi feita detecção do material genético do patógeno em nenhum dos participantes.
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Em agosto de 2015, quando o Brasil parecia só ter olhos para a Operação Pixuleco, braço da Lava-Jato que prendeu o ex-ministro José Dirceu, o noticiário político foi interrompido por notícias sobre o aumento no número de nascimento de crianças com microcefalia. Até então, poucos leigos conheciam esse sintoma. A epidemia de zika, tratada pela imprensa, naquela época, como “doença misteriosa”, foi associada ao tamanho reduzido do crânio por médicos nordestinos, que viam, a cada dia, uma quantidade de bebês nascerem com o problema, ao mesmo tempo em que as mães relatavam terem sido acometidas por uma “virose” quando gestantes.
Um mês depois, a obstetra Adriana Melo, de Campina Grande, na Paraíba, encontrou material genético do zika no líquido amniótico de um feto com microcefalia. Com a hipótese cada vez mais evidente, o Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC) reviu relatos médicos e, há cinco meses, afirmou, em um artigo publicado no New England Journal of Medicine, que “está claro que o vírus causa microcefalia”.
Até agora, porém, tudo isso se baseava em estudos de casos isolados. Ao fazer a comparação de bebês saudáveis do ponto de vista neurológico com crianças com microcefalia, a pesquisa brasileira elimina — ou, ao menos, reduz significativamente — dúvidas sobre a relação entre a condição e o zika. “Os relatos de caso descreviam, mas não se sabia a taxa de infecção”, explica a pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Thália Velho Barreto de Araújo, principal autora do artigo, publicado ontem na revista The Lancet Infectious Diseases.
Para comparar a frequência de microcefalia, os pesquisadores recrutaram, em oito maternidades de Recife, 32 recém-nascidos com o perímetro cefálico igual ou menor que 31,9cm (meninos) e igual ou menor que 31,5cm (meninas), o que caracteriza a condição. Ao mesmo tempo, incluíram 62 bebês nascidos no mesmo período e provenientes da mesma região. Nenhum desses últimos apresentavam má-formação no crânio ou em outros órgãos, o que foi comprovado por exames adicionais de imagem. Nos pacientes de microcefalia, os investigadores retiraram amostras de sangue do cordão umbilical e do líquido cefalorraquidiano. No grupo saudável, foram feitos somente os exames de sangue.
Os cientistas detectaram a presença do vírus em 13 crianças com microcefalia, o correspondente a 40% da amostra. Por outro lado, não havia sinal do zika circulando no organismo dos 62 bebês de controle — isso equivale a dizer que a frequência do agente patógeno nas crianças com perímetro cefálico menor que o normal foi 55,5 vezes maior, comparada aos recém-nascidos sem alterações. “O resultado do estudo afirma que a infecção intrauterina aumenta a chance de se ter microcefalia”, resume Thália Velho Barreto de Araújo.
Mais mistérios
Todas as mães foram submetidas a exames de sangue. Entre as que deram à luz bebês com microcefalia, 81% apresentavam o vírus circulando no organismo. Nas demais, o percentual foi de 61% — nem todas as mulheres infectadas vão transmitir o zika para os filhos, algo que ainda está sendo investigado pela ciência. Outro mistério é o fato de algumas crianças, para quem o vírus foi passado, não apresentarem alterações no cérebro. “Uma hipótese possível está associada à época da gravidez que a mãe foi infectada, mas ainda não podemos responder a essa questão”, diz a pesquisadora pernambucana. Acredita-se que os danos cerebrais são mais graves quando o vírus entra no organismo no primeiro semestre de gestação.
Para Ricardo Arraes de Alencar Ximenes, também pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e coautor do estudo, o resultado deixa importantes mensagens para a saúde pública. “A primeira é que se coloca a necessidade de se desenvolver uma vacina. A segunda é a melhora da situação de saneamento e abastecimento de água. Uma boa parte do foco do mosquito é a água armazenada para o uso das famílias, e isso é uma coisa que poderia ser resolvida com o abastecimento de água”, destaca. “Os serviços de saúde também precisam se estruturar para atender essas crianças, que necessitam de um atendimento multiprofissional”, diz Ximenes. De acordo com o pesquisador, ainda não é possível afirmar que, neste ano, haverá uma epidemia de microcefalia, pois as crianças de mães infectadas pelo zika em janeiro estão por nascer.
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