Ciência e Saúde

Cientistas identificam genes relacionados à dependência da maconha no corpo

Uma pesquisa publicada na última edição da revista Jama Psychiatry oferece mais bases à discussão ao desvendar variantes genéticas relacionadas tanto com o risco aumentado de dependência da droga quanto para a predisposição genética para doenças da mente

Isabela de Oliveira
postado em 02/04/2016 08:02

Os debates sobre a legalização da maconha não esbarram apenas em tabus. Falta, realmente, um chancelamento científico sobre o impacto do consumo, os fatores que predispõem ao uso e ao vício e as potenciais associações da erva com efeitos adversos para a saúde, especialmente a mental. Uma pesquisa publicada na última edição da revista Jama Psychiatry oferece mais bases à discussão ao desvendar variantes genéticas relacionadas tanto com o risco aumentado de dependência da droga quanto para a predisposição genética para doenças da mente.

Liderados por Joel Gelernter, da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, os cientistas descobriram que genes que favorecem a dependência de maconha também desencadeiam o transtorno depressivo maior (TDM). O estudo sugere ainda uma correspondência genética entre o vício e quadros esquizofrênicos. ;Esses resultados são os primeiros, no nosso conhecimento, que identificam alelos específicos para dependência de cannabis e fatores genéticos que potencialmente contribuem para comorbidades da dependência, como depressão e esquizofrenia;, diz Gelernter.

Para Arthur Guerra de Andrade, diretor do Programa de Álcool de Drogas do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), a pesquisa traduz o que os clínicos observavam no dia a dia. ;Os achados abrem portas enormes para que possamos trabalhar em nível de diagnóstico e prevenção. Os autores mostram que a maconha não é tão inócua quanto alguns falam. Se há vulnerabilidade para quadros depressivos e esquizofrênicos, ela pode deixar as pessoas mais exposta a essas doenças.;

O médico nota, contudo, que os resultados excluem medicamentos à base de cannabis. ;O medicamento não é a maconha em si, mas alguns compostos presentes lá. De fato, o remédio funciona em diversas ocasiões, mas esse estudo aponta uma coisa diferente, sobre o vício na erva. Não podemos confundir isso. Outra coisa importante: ninguém duvida que a planta tenha efeitos medicinais, mas nem sempre são superiores aos de medicamentos convencionais;, ressalta.

A equipe de Joel Gelernter encontrou três variantes genéticas, ou polimorfismos de nucleotídeo único (SNPs, pela sigla em inglês), como fatores de risco para o vício. Um deles, o rs143244591, ainda não teve as funções descritas. Mas o rs146091982, no gene SLC35G1, está relacionado à regulação da concentração de cálcio no sangue, cuja sinalização já foi associada à dependência de opiáceos. Nos domínios do gene CSMD1, a terceira variante está envolvida no desenvolvimento do sistema nervoso central. A relação seria com a esquizofrenia: outras variantes do CSMD1, mas não as mesmas identificadas nessa pesquisa, já foram relacionadas ao risco aumentado para a doença.

O desencontro levou James Walters, da Universidade de Cardiff, no Reino Unido, a considerar essa parte da pesquisa inconsistente. ;O título do trabalho sugere que há um compartilhamento entre esquizofrenia e dependência de cannabis, mas parece que essa evidência é limitada à observação de que os SNPs diferentes no mesmo gene (CSMD1) estão envolvidos em ambas as desordens. Tendo em conta os efeitos funcionais desconhecidos das variantes associadas, a importância desse achado é incerta;, explica.

Hipóteses

Resultados estatisticamente relevantes explicam parte da relação da dependência de maconha e TDM: 1,7% das variantes genéticas encontradas nos estudo estão envolvidas tanto no vício em cannabis quanto em quadros de depressão maior. Os achados podem refletir um compartilhamento de mecanismos subjacentes, embora, como reconhecem os próprios autores, também podem indicar que o consumo da erva medeie os efeitos de genes no risco para depressão, e vice-versa.

Segundo Helena Moura, psiquiatra especialista em dependência química, existem três teorias bem-aceitas para explicar a relação entre dependência e transtornos psiquiátricos. A primeira defende que distúrbios de base levam ao vício por alimentarem a impulsividade das pessoas, que tendem a ter percepção de risco diminuída e necessidade de automedicação.

A segunda hipótese aponta que as drogas desencadeiam os distúrbios; e a terceira sustenta que doenças mentais e dependência ocorrem simultaneamente pelas mesmas vias orgânicas.

As evidências de Joel Gelernter reforçam a validade da última, pelo menos no que diz respeito à depressão. ;Essas alterações genéticas não são raras: o estudo aponta que de 4% a 6% da população geral as possuem, e essa é uma estatística relevante. Para se ter ideia, apenas 1% das grávidas com vírus zika geram bebês com microcefalia e, mesmo assim, há um justificado alarde nacional. Além disso, o estudo mostra a necessidade de rever o tratamento de pessoas com dependência química e comorbidades. Se há sobreposição genética, então, há necessidade de que os cuidados sejam integrados. Hoje, primeiro a pessoa é tratada para dependência e, só depois, abordam os outros problemas.;

Em alta

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a cannabis é, de longe, a droga ilícita mais cultivada, traficada e de uso exagerado no mundo. Cerca de 147 milhões de pessoas, ou cerca 2,5% da população mundial, a consomem, contra 0,2% de usuários de cocaína e 0,2% de opiáceos. Nesta década, o abuso de maconha cresceu mais rapidamente do que o de cocaína e opiáceos. Países desenvolvidos da América do Norte, da Europa Ocidental e da Austrália são os que mais registram casos de dependência.

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