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Ciência e Saúde

Dizer 'só cumpro ordens' é mais fácil do que tomar decisões, diz estudo

Quando pessoas afirmam que "só cumpriram ordens", elas não estão apenas tentando fugir de suas responsabilidades. Prejudicar alguém livremente e agir sob coerção são experiências subjetivas realmente distintas


;Não posso reconhecer o veredito de culpado;, disse Adolf Eichmann, tenente-coronel encarregado da logística de extermínio do regime de Adolf Hitler. Responsabilizado, no fim de 1961, por 15 crimes de guerra, admitiu a culpa apenas de ;ter sido obediente;, salientando que quem perseguia os judeus era o Estado alemão. Antes de Eichmann, julgado em Israel, dezenas de nazistas alegaram, perante o Tribunal de Nuremberg, em 1945 e 1946, que só tinham ;cumprido ordens;.

Estudo publicado hoje na revista Current Biology sugere que o ;argumento de Nuremberg; ; quando usado em contextos bem menos extremos ; pode ser mais que uma desculpa para se eximir de responsabilidades. Em certos casos, agir após um comando reduz o senso de agenciamento, nome dado à percepção do tempo entre ação e consequência.

Por exemplo, quando alguém aperta um interruptor e vê a luz se acender, percebe os eventos como simultâneos, embora haja um curto espaço de tempo entre eles. Essa sensação de proximidade entre a ação e seu resultado é o senso de agenciamento. Estudos anteriores haviam mostrado que o intervalo entre dois eventos parece ser maior quando um ato involuntário leva a uma consequência ruim. E, agora, os especialistas notaram que o mesmo acontece quando a pessoa faz mal a outra seguindo a ordem de uma terceira, ou seja, elas vivenciam aquela experiência de forma semelhante à de uma ação realizada sem querer.

Patrick Haggard, autor-sênior do artigo e pesquisador do Instituto de Neurociência Cognitiva da University College London, enfatiza que os resultados não devem ser encarados como justificativa para atrocidades como o Holocausto. No entanto, pode ser útil para explicar situações menores, como as reproduzidas durante os experimentos que conduziu com pesquisadores da Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica.

Na pesquisa, voluntárias se revezavam nas posições de ;agente; e ;vítima;. Quem estava no primeiro papel podia prejudicar a outra de duas formas: retirando pequenas quantidades de dinheiro dela ou aplicando pequenos choques elétricos. Sempre que agia dessa forma, a agente tinha um ganho financeiro. Em alguns momentos, ela era inteiramente livre para escolher se aplicava ou não a punição. Em outros, um pesquisador a ordenava a agir dessa maneira.

O experimento mostrou que, quando a agente prejudicava a vítima de forma livre, o senso de agenciamento era maior, ou seja, ação e consequência pareciam mais próximas. Quando o mal era feito após uma ordem, o senso era reduzido, e a consequência parecia ter demorado mais para surgir. Eletroencefalogramas mostraram que tomar a decisão livremente e decidir após uma ordem coercitiva representavam experiências cerebrais diferentes. Segundo Hagaard, os resultados mostram que os sentimentos primários e o processamento neurofisiológico de agência são reduzidos pela coerção.

O trabalho é claramente inspirado na pesquisa clássica sobre obediência de Stanley Milgram, psicólogo americano que, nos anos 1960, criou um experimento para verificar se, ao receberem ordens de uma autoridade, pessoas comuns estariam dispostas a aplicar choques ; potencialmente letais ; em um desconhecido. A ;tortura; era encenada com a ajuda de um ator contratado pelo cientista, mas o impacto do estudo foi bem real. Na época, muitos viram nele uma explicação para eventos como o Holocausto. Hoje, contudo, os resultados de Milgram são muito questionados (leia Três perguntas para) e há dúvidas, por exemplo, se os participantes não perceberam de que tudo era uma espécie de pegadinha.

Responsabilidades
Haggard e colaboradores retomam a ideia de Milgram sob outro formato. O autor avalia que, embora os achados não possam ser usados para justificar crimes hediondos, eles mostram que a maior responsabilidade deve ser dada às pessoas que dão as ordens. ;As sociedades precisam gerenciar a atribuição de responsabilidades com muito cuidado, caso contrário, todo mundo sofre;, defende. ;Mas não é porque as pessoas se sentem menos responsáveis que não devem ser responsabilizadas. A sociedade deve considerar fatos objetivos da agência, bem como a experiência subjetiva.;

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