Jornal Correio Braziliense

Ciência e Saúde

Variante genética aumenta probabilidade de sofrer com a esquizofrenia

Especialistas consideram a descoberta um avanço fundamental para o desenvolvimento de tratamentos contra o mal


Ela acompanha a humanidade há tanto tempo que um dos mais célebres papiros do Egito antigo, de 1550 a.C., já fazia referências a um mal com sintomas idênticos aos da esquizofrenia. Ao longo dos milênios, alucinações visuais e auditivas continuaram sendo relatadas, quase sempre associadas à possessão demoníaca. A duradoura convivência com esse distúrbio, muitas vezes incapacitante, não foi suficiente, porém, para desvendá-lo. Pouco se sabe sobre as bases biológicas do transtorno mental, o que dificulta a busca por tratamentos eficazes. Para muitos cientistas, o segredo está codificado nos genes.

Na edição mais recente da revista Nature, Steven McCarroll, professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), descreve uma descoberta que, de acordo com ele, poderá ;revigorar a pesquisa translacional; da esquizofrenia. Baseada na análise genética de 65 mil pessoas, a equipe do pesquisador constatou que o risco da doença aumenta em pessoas que carregam uma variante do gene C4, bastante conhecido pelo papel que desempenha no sistema imunológico. Agora, pela primeira vez, ele é associado também ao desenvolvimento do cérebro e do transtorno mental, que afeta cerca de 1% da população adulta.

McCarroll acredita que o estudo ajudará a abrir a caixa-preta na qual se esconde a causa biológica da esquizofrenia. ;A doença foi descrita cientificamente há 130 anos e, desde então, não foram feitas descobertas significativas nem sobre sua origem nem a respeito de uma forma de tratá-la;, observa. Um passo importante foi dado em 2014, quando um grupo internacional de pesquisadores liderado pelo Instituto Broader, do MIT, identificou mais de 100 regiões do genoma humano que carregam fatores de risco para a doença. O trabalho de McCarroll afunila o anterior, trazendo evidências sobre a participação crucial de um único gene para desencadear, no cérebro, o mecanismo que culminará no transtorno. Há outras variantes genéticas envolvidas, assinala o pesquisador, mas o C4 parece ser o protagonista dessa história.

Poda sináptica

Na adolescência, o cérebro começa a passar por um processo de reorganização, jogando fora as conexões entre neurônios que não parecem mais necessárias. A chamada ;poda sináptica; é muito importante para refinar o sistema cognitivo ; conexões presentes desde o nascimento são perdidas para que novas se formem, incrementando as funções cerebrais. Trabalhando com dados genéticos humanos e modelos animais em laboratório, McCarrol constatou que o C4 é o chefe dessa equipe de ;jardineiros;, dando ordens para que façam as podas cerebrais.


Nas pessoas que carregam a versão normal, o C4 orquestra o descarte das conexões até que a reorganização da arquitetura do cérebro esteja a contento. A segunda descoberta crucial dos cientistas do MIT foi que alguns indivíduos têm uma variante do gene que o deixa superativo. Dessa forma, ele comanda uma poda excessiva ; e irreversível ; de conexões, impedindo o desenvolvimento normal do cérebro. ;A poda sináptica acontece perto do fim da adolescência. Não é uma coincidência que os primeiros sinais da esquizofrenia surjam exatamente nessa fase da vida. Embora existam relatos raros de crianças com sintomas semelhantes, esse distúrbio mental se manifesta após os 18 anos;, observa McCarrol.

De acordo com Beth Stevens, neurobióloga que participou do estudo, outro mistério que a descoberta pode ajudar a solucionar se refere à estrutura do córtex cerebral das pessoas com esquizofrenia. Há muito tempo se sabe, graças a exames post mortem, que essa área do cérebro de indivíduos que têm a doença é mais fina, comparado a quem não sofre da condição. ;O córtex é a camada mais externa do cérebro e é responsável por diversos aspectos cognitivos. O excesso de podas das conexões acaba reduzindo a espessura da região. Ao estudar no microscópio os tecidos cerebrais de pessoas que tinham a doença, nós também observamos um número bem menor de neurônios conectados. Isso tudo é bem condizente com nossas descobertas;, observa.

Virada crucial

Em nota, Bruce Cuthbert, diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, que não participou do estudo, afirmou que o trabalho ;marca uma virada crucial na luta contra doenças mentais;. ;Como as origens moleculares das doenças psiquiátricas são pouco entendidas, esforços da indústria farmacêutica para desenvolver novos tratamentos são poucos e deixam muito a desejar. Esse estudo muda o jogo. Graças a essa importante descoberta genética, podemos finalmente ver potencial para testes clínicos, detecção precoce, novos tratamentos e até prevenção;, avalia.

O geneticista David Goldstein, pesquisador do Centro Médico da Universidade de Colúmbia, destaca que a equipe do MIT conseguiu vencer um obstáculo enorme, pavimentando o caminho para a descoberta de uma terapia adequada às pessoas com esquizofrenia. Goldstein, que também não participou do estudo, avaliou o trabalho a pedido da Nature e, em uma análise publicada na revista, contou que a região do cromossomo 6 onde se localiza o gene C4 é extremamente complexa, com mais de 3,6 milhões de bases. ;De fato, é uma região tão desafiadora que geneticistas sempre brincam que encontram associações em qualquer lugar, exceto nela;, escreveu. ;Contudo, a equipe parece ter passado por cima desses desafios de forma bem-sucedida;, afirmou.


; Ligação com a ansiedade

Um estudo publicado ao longo da semana na edição on-line da revista Jama Psychiatry constatou que ansiedade e sintomas negativos (apatia e dificuldade de expressar emoções e sentimentos) são maiores em adolescentes com risco genético para esquizofrenia que na população em geral. Os pesquisadores da Universidade de Bristol, na Inglaterra, utilizaram dados genéticos e comportamentais de 9.912 jovens coletados por um levantamento longitudinal do antigo condado de Avon. Eles encontraram uma forte associação entre a presença de genes associados ao distúrbio mental e/ou histórico familiar e sintomas negativos desencadeados por volta dos 16 anos. O mesmo não ocorreu em relação a episódios de depressão e psicose. De acordo com os cientistas, a detecção precoce do risco de esquizofrenia poderá ajudar no tratamento.