Pode ser que Brittany morra hoje. Mas é possível que ela deixe isso para depois. Seja qual for a decisão da americana de 29 anos, um objetivo foi cumprido. A jovem que sofre de um câncer terminal conseguiu dar novo tom à polêmica discussão sobre o direito de pôr fim a uma doença intratável. Nos vídeos e nas mensagens que posta na internet, Brittany afasta a imagem normalmente associada a pacientes que, como ela, decidem quando e como morrer. Ainda que triste, confere serenidade a um assunto que costuma levantar opiniões acaloradas, baseadas em questões morais, éticas e religiosas.
Foi no primeiro dia de janeiro que a psicóloga recebeu o diagnóstico de glioblastoma multiforme grau quatro, o mais agressivo câncer cerebral. Ela estava casada havia apenas um ano e sofria de enxaquecas muito fortes. Disposta a lutar contra a doença, submeteu-se, nove dias depois, a duas cirurgias ; uma craniotomia e uma ressecção parcial do lobo temporal. O objetivo era evitar o crescimento do tumor. Em abril, porém, o câncer não só havia retornado como estava mais agressivo. Mesmo se fizesse radioterapia ; procedimento que ela rejeitou devido aos efeitos colaterais ;, Brittany viveria mais seis meses, de acordo com os médicos.
A partir desse momento, a psicóloga, o marido, Dan, e a mãe, Debbie, começaram a pesquisar sobre suicídio assistido. ;Minha família e eu chegamos a uma conclusão devastadora: não há tratamento que possa salvar minha vida e os recomendados destruiriam o tempo que me sobra;, contou a jovem, em um artigo publicado no site da CNN. ;Eu não queria esse cenário de pesadelo para minha família;, disse Brittany, referindo-se a uma internação hospitalar. ;Então, comecei a pesquisar a morte digna. Essa é uma opção de fim de vida para pessoas mentalmente sadias, pacientes terminais com prognóstico de seis meses ou menos para viver. Isso me permitiria usar ajuda médica na hora da morte: posso pedir e receber a receita de uma medicação que eu possa ingerir por conta própria para acabar com meu processo de morte se isso se tornar impossível de lidar;, justificou.
Em um vídeo de seis minutos e meio divulgado pela organização Compassion & Choices, Brittany conta sua história e diz que, em vez de tratamentos invasivos, optou por aproveitar os dias que ainda têm pela frente fazendo o que mais gosta: ficando na companhia do marido, da mãe, do padrasto e do cachorro, e viajando. O último desejo foi na semana passada, quando foi com a família ao Grand Canyon. No estado americano de Oregon, para onde se mudou por causa da legislação que permite o suicídio assistido, a jovem guarda dois potes com o coquetel de medicamentos que vai tomar quando decidir que é hora de morrer.
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Inicialmente, a data prevista era hoje. Contudo, a dois dias da morte, planejada para acontecer no quarto do casal com a presença do marido, da mãe e de um médico amigo de Brittany, a jovem divulgou outro vídeo dizendo que poderá adiar o momento final. Apesar de sentir uma piora nos sintomas, com convulsões mais frequentes e lapsos de memória ; ela chegou a não reconhecer Dan ;, a psicóloga diz que ainda é capaz de sorrir, de passar bons momentos ao lado da família e, por isso, acredita poder adiar mais o dia da morte, ainda que o sinta cada vez mais próximo. ;Meu estado de saúde está se deteriorando rápido.;
;Mudança positiva;
Para a antropóloga Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, desde o início, a postura de Brittany conta pontos a favor daqueles que defendem o direito ao suicídio assistido. ;É um caso bastante sensível e delicado, mas importante para o debate. Os oponentes do suicídio assistido alegam que as pessoas tomam essa decisão em um ato intempestivo. Brittany transformou isso num processo feliz;, diz a pesquisadora, lembrando que o desejo da jovem é aproveitar cada minuto fazendo as coisas de que gosta. ;Ao revisar a data, ela dá um sinal importante de saúde mental, ela se dá o direito de permanentemente de fazer perguntas e tomar decisões;, afirma.
Longe de pensar apenas no próprio caso, Brittany quer estender a outros americanos a possibilidade de escolher como morrer. ;Meu objetivo é influenciar essa política para uma mudança positiva, eu gostaria de ver todos os americanos terem acesso aos mesmos direitos de cuidado em saúde;, afirma. Nos Estados Unidos, cada estado tem sua legislação e apenas quatro ; Oregon, Montana, Vermont e Washington ; permitem o suicídio assistido. ;Brittany está ensinando o mundo que todos merecem a oportunidade de morrer com dignidade. Ela está mudando corações e mentes em uma escala sem precedentes a respeito de um assunto que, basicamente, é de direitos humanos;, acredita Barbara Coombs Lee, presidente da organização Compassion & Choices.
Na Europa, a prática é legal na Suíça, na Holanda, em Luxemburgo e na Bélgica. Um estudo recente publicado no Journal of Medical Ethics mostrou que o número de estrangeiros que viajam para a Suíça para morrer dobrou em quatro anos. Existe até um termo para isso: turista suicida. Os autores do artigo analisaram os 611 casos de suicídio assistido de estrangeiros ocorridos no país europeu entre 2008 e 2012. Desses, 268 eram alemães, 122 britânicos, 66 franceses, 44 italianos e 21 americanos. No período, um cidadão brasileiro também recorreu à prática na Suíça, mostra a pesquisa. Em média, a idade dos pacientes é de 69 anos, variando de 23 a 97; 58,5% são mulheres e os principais motivos são doenças neurológicas (47%) e câncer (37%), seguidas por doenças reumáticas, cardiovasculares, respiratórias e crônicas, entre outras.
Falta debate no Brasil
Para a antropóloga Débora Diniz, no Brasil, as discussões legais sobre suicídio assistido são quase nulas e precisam ser reforçadas. Não há sequer menção à eutanásia ; quando a morte é provocada por outra pessoa, como o médico, e não pelo paciente ; no Código Penal. No máximo, o artigo 122 criminializa os atos de ;induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça;, com pena de 2 a 6 anos, duplicada quando praticados em menores.
A especialista acredita que a falta de uma legislação e de debate qualificado sobre o tema no país acaba resultando em casos dramáticos, como o acompanhado por ela há cerca de 10 anos, em Brasília. Débora foi chamada pelo Ministério Público para prestar assessoria a respeito de uma família que foi à Justiça pedir para os médicos não entubarem um bebê de 8 meses que tinha amiotrofia espinhal progressiva tipo 1, doença incurável, degenerativa e com curto prognóstico. A criança era submetida diariamente ao que os pais descreveram como tortura. Fisioterapia, punção da veia, aspiração pulmonar de duas a três vezes ao dia, procedimentos invasivos e dolorosos. Nada disso, contudo, modificava o quadro clínico da criança, apenas a mantinha viva.
Como a doença provoca perda da capacidade muscular, o bebê perderia a habilidade de respirar, tendo que ser submetido à ventilação mecânica. Foi por isso que os pais recorreram à Justiça. ;Do nosso ponto de vista, aquilo não é mais vida. Aquilo é condenar uma pessoa a não poder morrer (...) Uma criança no respiradouro não tem a possibilidade de morrer...;, disseram os pais da criança. As declarações constam do relatório elaborado por Débora. Uma semana depois da decisão favorável, o bebê morreu.