A diversidade das ratitas ; grupo de aves que não voam, como emas e avestruzes ; há muito tempo gera debates entre os especialistas. As discussões partem de uma pergunta intrigante: se as asas desses animais não os ajudam a levantar voo, como eles cruzaram oceanos, dividindo-se em diferentes espécies fracionadas por todos continentes do Hemisfério Sul? Uma linha de estudos, a mais aceita hoje, defende que a atual distribuição geográfica é reflexo da fragmentação do Gondwana, o supercontinente que, depois de separado, deu origem às terras que ocupam a porção sul do mapa terrestre. Contudo, resultados de uma pesquisa publicada na edição mais recente da revista Science contradizem essa teoria, oferecendo evidências de que a migração das ratitas ocorreu pelo céu mesmo.
;Nossos resultados mudam fundamentalmente a forma como entendemos a evolução desse grupo e fornecem reflexões valiosas sobre o que aconteceu ecológica e evolutivamente depois da extinção em massa que dizimou os dinossauros;, diz o autor Kieren Mitchell, pesquisador da Universidade de Adelaide, na Austrália. As conclusões do autor desafiam a teoria de que as espécies de ratitas compartilham um ancestral que também não voava e que os exemplares começaram a se diferenciar quando o supercontinente já estava fragmentado, há mais ou menos 130 milhões de anos.
;Hoje, sabemos que não foi bem assim. O uso da vicariância (separação em continentes) para explicar as relações de parentesco entres as espécies já vem sendo questionada há algum tempo, porém essas relações eram pouco elucidadas;, reforça Nathália Machado, pesquisadora pós-doutora do Laboratório de Biogeografia da Conservação, ligado à Universidade Federal de Goiás (UFG).
O grande problema de estudar a história evolutiva das ratitas é que moléculas bem preservadas, capazes de fornecer informações genéticas de espécies extintas, não são comuns no meio ambiente. Assim, lacunas na história de algumas aves dificultam as pesquisas sobre a evolução do grupo. Por exemplo, trabalhos anteriores sugeriram que o avestruz da África, maior ave do mundo atualmente, pertence a uma linhagem muito antiga, tendo parentesco com outro exemplar africano de medidas colossais, a extinta ave-elefante-de-madagascar. A dificuldade de estudar essa última, no entanto, deixava a teoria sem confirmação.
DNA
O novo estudo, além de apontar para um ancestral voador das ratitas, não só conseguiu superar esse obstáculo como sugere que a teoria não é válida: avestruzes e aves-elefantes, diz Kieren Mitchell, não são parentes. Para isso, ele utilizou um método criado por Alan Cooper, pesquisador-sênior que assina o artigo.
Cooper descobriu, 10 anos atrás, que é possível extrair material genético antigo dos ossos de espécies extintas. Usando essa teconologia, Mitchel investigou o DNA mitocondrial (material genético herdado da mãe e que está fora do núcleo celular) de duas espécies de aves-elefantes, a Aepyornis hildebrandti e a Mullerornis agilis. As análises surpreenderam o australiano ao revelarem que os gigantes herbívoros de Madagascar, com seus 3m e 250 kg, são primos do pequeno quivi, uma tímida ratita noturna da Nova Zelândia que possui apenas 5kg. O curioso é que o país habitado pelo quivi é separado da África por quilômetros de oceano.
;Essa descoberta é completamente sem precedentes. Ninguém, em mais de um século, propôs a relação entre dois grupos tão diferentes. Muitos cientistas sugeriram uma proximidade entre a ave-elefante e os avestruzes, mas refutamos isso conclusivamente;, defende Mitchell. Segundo ele, a especiação por vicariância continental não esclarece o parentesco das espécies, porque Nova Zelândia e Madagascar nunca foram massas de terra conectadas. Além disso, dados genéticos mostram que o quivi e a ave-elefante migraram muito tempo depois que Gondwana iniciou o processo de fragmentação.
Portanto, tudo indica que elas precisaram atravessar o oceano voando, pois o supercontinente já estava separado. ;Parece que o ancestral comum das duas espécies podia voar longas distâncias. Uma evidência é a existência de um quivi neozelandês que viveu durante o mioceno e podia voar;, completa o autor. ;É impressionante que as ratitas tenham desenvolvido diferentes tamanhos independentemente do ancestral comum, que podia voar, e, para mim, isso é mais uma confirmação do poder da seleção natural;, reforça o autor.;