Muito antes que os dinossauros aparecessem na Terra, estranhos répteis e anfíbios habitavam um planeta com clima e geografia completamente diferentes do que se vê hoje. Era o Período Permiano (290 a 248 milhões de anos atrás), o último da Era Paleozoica, quando o globo se resumia a um único e enorme continente, a Pangeia. Essa é uma época sobre a qual pouco se sabe em relação à região onde hoje é o Brasil. Mas descobertas recentes estão ajudando a escrever o passado remoto do país, e uma delas foi divulgada ontem pela revista da Academia Americana de Ciências, a Pnas.
Uma equipe de pesquisadores descreveu a existência de uma nova espécie, escavada em uma fazenda da região dos pampas do Rio Grande do Sul. O Pampaphoneus biccai, ou ;matador dos pampas;, batizado com o gênero biccai em homenagem a José Bicca, dono das terras onde foi encontrado, não era um réptil nem um dinossauro, mas um terápsido, ancestral dos mamíferos. Pela dentição, foi possível identificar que se trata de um carnívoro ; o primeiro já encontrado na América do Sul.
Juan Carlos Cisneros, paleontólogo da Universidade Federal do Piauí que se dedica a tirar das sombras o Período Permiano brasileiro, conta que chegou à fazenda graças ao programa de imagens por satélite Google Earth. ;Ele não mostra os fósseis, mas, pelo tipo de rocha, sabemos que (os sítios) podem conter animais fossilizados. Temos de ir a campo e escavar, para ver se encontramos alguma coisa;, relata. Cisneros diz que, em média, para cada quatro visitas frustradas, uma confirma a existência de fósseis.
Foi o que ocorreu em 2008, quando a equipe do paleontólogo foi até a Fazenda Boqueirão, no município de São Gabriel, checar se uma formação rochosa escondia algum tesouro do Permiano. Lá, eles encontraram o crânio bem preservado do Pampaphoneus biccai, que precisou de um ano para ser completamente limpo e restaurado. O crânio, de 35cm, continha quatro caninos curvados e, por trás desses dentes, havia outros menores, porém robustos. ;Eles podiam ser usados para triturar ossos, como fazem hoje as hienas;, diz Cisneros. Segundo o cientista, é possível que a nova espécie caçasse herbívoros com os caninos e também aproveitasse restos de animais mortos, roendo as carcaças.
Cisneros explica que é muito difícil encontrar fósseis de animais terrestres inteiros, pois os ossos costumam se espalhar. No caso do Pampaphoneus biccai, só foi possível resgatar o crânio, mas, ainda assim, os cientistas conseguiram reconstituir o que seria sua provável aparência. Com um molde de resina da peça nas mãos, o pesquisador foi até a África do Sul, onde há o maior registro de fósseis desse período, comparar a anatomia do crânio com a de espécies já descritas. Outro membro da equipe viajou até a Rússia, onde também foram encontrados animais parecidos. Em nenhum dos casos, porém, eles se depararam com um fóssil idêntico ao do ;matador dos pampas;.
Aparência
Confirmado que se tratava de uma espécie até então desconhecida, os pesquisadores tentaram reconstituir a aparência do animal. Cisneros diz que o crânio é insuficiente para dar pistas sobre o Pampaphoneus biccai, mas que, ao compará-lo com parentes próximos, os cientistas conseguiram ter uma ideia de como ele seria: um bicho de 3m de comprimento, muito parecido com dinossauros e répteis, mas de uma outra classe de vertebrados.
De acordo com o pesquisador, fósseis de animais terrestres do Permiano são pouco pesquisados no Brasil, onde os cientistas concentram-se mais no Jurássico. Além disso, carnívoros são mais difíceis de serem encontrados porque, como define o antropólogo, ;tem de existir mais comida (herbívoros) que consumidores;. O achado da equipe, portanto, foi raro, o que não significa que os cientistas se deram por contentes. Atualmente, estão sendo feitas escavações no Piauí, no Maranhão e no Tocantins. Embora nenhum animal terrestre tenha sido encontrado, eles se depararam nada menos do que com uma floresta fossilizada. No princípio, os pesquisadores pensaram que eram apenas rochas, mas, ao analisá-las de perto, viram que se tratava de árvores, porque havia anéis nos troncos ; e não eram pequenos: tinham mais de 1m de circunferência.
Descobertas como essas vão ajudar a desvendar o clima, a temperatura e o ecossistema de uma época em que o Brasil estava ;colado; a Austrália, África e Índia. Segundo Cisneros, o ;matador dos pampas; também é importante para mostrar que animais como ele se dispersavam pelas mais longínquas regiões do supercontinente.