Quando Carla Amaral tinha 11 anos, o assunto do momento era Roberta Close, travesti considerada, à época, a mulher mais bonita do Brasil. Ao ver as coleguinhas irem para a escola usando saias e com enfeites no cabelo, Carla, que nasceu em corpo de homem, sofria muito. ;Acreditava que eu também poderia ir daquele jeito, mas, infelizmente, não foi isso que aconteceu. Tinha de ir vestida de menino e me lembro que chorava muito na sala de aula;, recorda.
Hoje uma das diretoras da Associação de Travestis e Transexuais de Curitiba, Carla, 38 anos, conta que a frustração não fez com que desistisse de querer se adequar ao gênero feminino. ;Aos 15, eu já tinha começado o meu tratamento hormonal e usava roupas conforme minha identidade já definida, meu desejo de viver;, diz. Embora ainda não tenha passado pela cirurgia de transgenitalização, ela se orgulha do registro civil, no qual aparece como mulher. ;A aceitação em relação ao gênero com o qual sempre me identifiquei aconteceu naturalmente;, diz.
O caso de Carla encaixa-se em uma patologia denominada transtorno da sexualidade e de gênero, classificada pela Organização Mundial da Saúde e pela Associação Psiquiátrica Americana. Entre especialistas e transexuais, porém, essa é uma caracterização polêmica. Especula-se que a origem seja genética, mas a pergunta que atormenta pesquisadores é: por que definir e diagnosticar um gênero? Para muitos, é necessário despatologizar a transexualidade, uma façanha alcançada, até agora, somente pela sociedade francesa.
No Brasil, o problema de desassociar essa condição de uma doença é que, assim, os transexuais perderiam o direito de receber tratamento gratuito pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Justamente por se considerar uma patologia é que, no país, as cirurgias e a terapia à base de hormônios, procedimentos autorizados desde 1997 pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), são realizados pelo SUS. Para ganhar os medicamentos e se candidatar à operação de mudança de sexo, o indivíduo tem de obedecer aos critérios estabelecidos por uma resolução do conselho, que inclui a necessidade de acompanhamento por psiquiatras, psicólogos, endocrinologistas, cirurgiões e assistentes sociais, com laudo emitido pelo psiquiatra, referendando a transgenitalização.
A obrigatoriedade de se diagnosticar o gênero divide as opiniões. O Conselho Federal de Psicologia (CFP), por meio do Manifesto pela Despatologização das Identidades Trans, comunica que não concorda de que se associe a condição com uma doença, ressaltando que o processo de medicamentos e cirurgias não deve ser condicionado a um diagnóstico psiquiátrico. ;Defendemos o princípio da integralidade do SUS, considerando uma concepção positiva da saúde, em que a mesma não é sinônimo de ausência de doença, e, sim, do bem-estar biopssiquicossocial das pessoas;, explica o órgão, por meio da assessoria de imprensa. ;Estudos de gênero e as próprias experiências vividas por pessoas transexuais demonstram que a concepção binária de gênero presente no Ocidente e o alinhamento entre sexo, gênero e desejo não é algo natural;, afirma o CFP.
Individualidade
Segundo a psiquiatra, fundadora e coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (FMUSP) Carmita Abdo, todo o processo de acompanhamento é importante para prevenir erros de procedimentos e consequências negativas. ;O que caracteriza a transexualidade é um desconforto importante em relação ao próprio corpo e a necessidade irredutível de compatibilizar esse corpo com a identidade de gênero que o indivíduo tem de si próprio;, explica.
De acordo com Abdo, há situações em que, à primeira vista, esse parece ser o quadro. Entretanto, com o acompanhamento verifica-se que se trata de outra condição, a qual requer outro tipo de procedimentos. Para os transexuais, o tratamento consiste, atualmente, de psicoterapia por pelo menos dois anos, um pré-requisito para a cirurgia, hormonioterapia e, por fim, a operação de mudança de sexo. A especialista explica que um dos objetivos da psicoterapia é reconhecer as características individuais de cada transexual. Ela comenta que, em alguns países, quando se tem certeza da existência da condição de transexual, a hormonioterapia é iniciada antes mesmo da idade adulta. Dessa forma, o indivíduo cresce já produzindo os hormônios do gênero com o qual se identifica, algo que, no Brasil, é proibido.
;Aqui, não existe nenhuma proposta de despatologização da transexualidade. Existem apenas alguns trabalhos focais no Rio de Janeiro e em Minas Gerais;, lamenta o sociólogo Manoel Neto, que pesquisa o tema. Provavelmente, no próximo ano, o assunto será mais debatido, porém.
A campanha mundial Stop Trans Pathologization 2012, que tem representantes e simpatizantes em todos os continentes, pretende intensificar sua atuação. Entre os objetivos da plataforma ativista estão retirar o transtorno de identidade de gênero dos manuais psiquiátricos, acabar com os tratamentos de normalização binária, garantir o acesso ; sem um diagnóstico prévio especializado ; aos tratamentos com hormônio e cirurgias, e oferecer cobertura universal ao processo de readequação de sexo/gênero, além de combater a transfobia e lutar pela retirara da obrigação de se mencionar o sexo nos documentos oficiais.