Uma boa notícia sobre a Líbia é tudo o que David Mattingly, arqueólogo da Universidade de Leicester, na Inglaterra, quer ver nos jornais. O país, que passa por um momento de transição depois da morte de Muamar Kadafi, foi manchete durante oito meses por causa da guerra que dizimou cerca de 60 mil pessoas. Porém, a nação africana tem muito mais a revelar que conflitos sangrentos. Como, por exemplo, uma cidade milenar escondida sob as areias do deserto.
;Com a queda de Kadafi, arqueólogos de todo o mundo poderão explorar melhor a história do país antes do período islâmico, algo que foi ignorado durante o regime dele;, diz ao Correio o especialista em arqueologia romana. ;Acredito que estamos participando de uma era de redescoberta da história da Líbia;, diz.
Segundo Mattingly, graças a imagens obtidas por satélite e fotografias tiradas em pleno ar, foi possível descobrir o que seria o resquício de uma civilização perdida, da época da ocupação de Roma, no deserto da Líbia. Não se trata, porém, de uma cidade romana ou grega. Segundo o professor, ela foi construída pelos garamantes, uma civilização pouco conhecida e geralmente desprezada por acadêmicos. ;Acreditava-se, até agora, no que Roma disse sobre eles: que eram pastores nômades sem grande importância e que formariam uma tribo de ;bárbaros; rudes;, conta o arqueólogo.
Mas a descoberta de Mattingly, que teve de sair às pressas da Líbia em fevereiro, mas espera retornar em breve, mostra que a história foi bem diferente. Os garamantes seriam, na opinião do arqueólogo, os ;mestres do Saara;. ;Essa civilização era extremamente sofisticada e representava um dos reinos mais poderosos do Norte da África;, sustenta.
O professor de Leicester passou cinco anos escavando uma das regiões mais inóspitas do deserto, Garama (atual Jarma), habitada entre 400 a.C. e 1937 d.C.. Lá, ele e sua equipe resgataram, da areia, o que teria sido o primeiro estado legitimamente líbio: um reino perdido, composto por mais de 100 sítios fortificados e vilas com estruturas semelhantes a castelos, além de diversas cidades, datando de 1 d.C. a 500 d.C. Os romanos chegaram ao local em 19 d.C., já no período do cônsul Lucius Cornelius Balbus. A desculpa oficial era que Garama precisava ser conquistada para evitar ataques a caravanas no deserto, mas Mattingly aposta que a força local dos garamantes estava incomodando a todo-poderosa cidade imperial.
As cidades escavadas pela equipe de Leicester mostram uma civilização em plena maturidade arquitetônica e social. ;A sociedade era complexa, hierárquica e organizada, eles tinham, inclusive, uma linguagem própria. Juntas, essas características preenchem o critério que define uma civilização;, diz Mattingly. A economia também era próspera, com exportação de produtos agrícolas e manufaturas. As evidências mostram que, em Garama, havia tecnologias avançadas de metalurgia, produção de vidro, refinamento de sal, além da lapidação de pedras semipreciosas. ;Até agora, os historiadores deixaram-se levar pelos escritores greco-romanos, que descreveram os garamantes como tribos bárbaras que viviam em tendas e não tinham qualquer sofisticação política nem social;, explica Mattingly. ;Para os romanos, era melhor acreditar no estereótipo dos bárbaros a encarar que estavam diante de um poderoso reino do deserto.;
Estado planejado
De acordo com o arqueólogo, é preciso fazer justiça aos garamantes, que teriam fundado o primeiro Estado genuinamente líbio, de 181 mil metros quadrados. Os bravos mestres do deserto fundaram a cidade por volta de 400 a.C., controlando uma área maior do que o Reino Unido por mais de mil anos, conforme contou o arqueólogo líbio Giuma Anag à rede CBS. Apesar de viverem em uma área inóspita, durante os períodos de seca, a cidade recebia chuvas tropicais, o que formava um corredor verde entre a costa mediterrânea e a África subsaariana. Com isso, formavam-se savanas habitadas por grandes animais, como elefantes, leões, girafas e rinocerontes. Em época de estiagem, eles migravam para os vales, onde havia água em lagos e aquíferos.
Graças à complexidade arquitetônica e aos escravos que mantinham, os garamantes construíram cidades planejadas, onde cultivavam árvores frutíferas, trigo, vinho e azeite de oliva. ;Eles eram mestres na tecnologia de irrigação, então, mesmo morando em uma zona tão inóspita, conseguiram um padrão de vida muito melhor que qualquer outra sociedade do Saara;, conta Andrew Wilson, arqueólogo da Universidade de Oxford, que avaliou o sistema de irrigação da civilização perdida, chamado de foggara.
David Mattingly conta que, no começo, os garamantes construíram habitações nas cavernas que contornavam o vale. Mas, por volta de 1000 a.C., dominando as técnicas aquíferas, puderam erguer acampamentos sofisticados na área desértica. No subsolo, eles construíram 600 túneis que, juntos, alcançavam mais de mil quilômetros, e ergueram 100 mil poços com 40 metros de profundidade. Tudo para manter uma população estimada entre 50 mil e 100 mil pessoas.
Os garamantes também possuíam uma fina arte funerária. Construídas com barro e tijolos, 100 tumbas com formato de pirâmide abrigam os restos mortais da alta sociedade da civilização. Os comuns eram enterrados em estruturas mais simples, ao redor do vale. ;Encontramos 120 mil sepulturas como essas;, diz Mattingly. Com financiamento da British Society for Libyan Studies, o arqueólogo pretende, agora, estudar os rituais funerários praticados pelos mestres do deserto.
O fim dos garamantes está associado à escassez da água. Depois de extrair 30 bilhões de galões ao longo de 600 anos, no século 4 d.C., já não havia uma gota para beber. Houve o declínio do império, dividido, então, em pequenas cidades-estado, que foram conquistadas pelo emergente mundo islâmico. Aos poucos, o que foi um poderoso reino ficou soterrado sob a areia. Poucos líbios conhecem a história de seus gloriosos antepassados. É algo que Mattingly quer devolver à população. ;Agora, as crianças poderão conhecer mais profundamente suas origens e se orgulhar delas;, acredita.