Jornal Correio Braziliense

Ciência e Saúde

Tecnologias ajudam cientistas a obter informações sobre pessoas mortas


Os pacientes têm alguns milhares de anos e, se contassem com toda a atenção médica que recebem atualmente, provavelmente não morreriam de doenças tão prosaicas como ferimentos ou picadas de animais. Pode ser tarde para salvá-los, mas não para descobrir o que os levou ao túmulo ; no caso, ao sarcófago. Cada vez mais, cientistas de várias partes do mundo estudam os mistérios das antigas múmias graças a aparatos modernos, como exames de tomografia computadorizada. Além de não danificar os corpos, esses procedimentos sofisticados conseguem revelar muito mais sobre a morte ; e a vida ; de pessoas que viveram tempos atrás.

Recentemente, o Museu Spurlock, da Universidade de Illinois, organizou um simpósio para discutir o caso de uma múmia que já havia sido estudada em 1990, sem diagnóstico conclusivo. Ela voltou ao consultório 20 anos depois, sob os cuidados de uma equipe composta por mais de 10 especialistas. Graças ao avanço da tecnologia de tomografia computadorizada, os pesquisadores conseguiram descobrir que os restos mortais eram de uma criança com 7 ou 9 anos de idade, que viveu e morreu na cidade egípcia de Al-Fayyum entre 50 d.C. e 150 d.C., época da ocupação romana.

Os primeiros testes com a múmia, na década de 1990, não revelaram se o corpo seria de um menino ou uma menina nem a causa da morte. Por isso, o museu resolveu que era hora de uma nova bateria de exames. ;Com as técnicas modernas, é possível preservar a múmia e, ainda assim, estudá-la por completo;, diz ao Correio Sarah Wisseman, escritora, arqueóloga e diretora do Programa de Tecnologias Antigas e Materiais Arqueológicos do estado de Illinois. De acordo com ela, as imagens mostraram dentes de leite e, ao mesmo tempo, o início da formação da dentição adulta, dando pistas sobre a idade da criança.

Ainda assim, nem as técnicas mais avançadas conseguem revelar o que a múmia parece querer esconder. A criança foi sepultada com as mãos sobre a pélvis. ;Só o exame de imagem não detecta o sexo. Por isso, quando estudamos múmias, precisamos levar em conta vários outros aspectos, além do que os raios X nos revelam;, diz Wisseman. O problema foi parcialmente resolvido por egiptólogos que apostam no sexo masculino devido a uma pintura que estava junto do sarcófago e parecia retratar um garoto. As pesquisas culturais foram importantes também para determinar que a criança era de família rica, pois o material usado para decorar sua morada final era refinado.

Mesmo rica, a múmia não foi devidamente preparada para a viagem à outra vida. O fato de que seus órgãos vitais foram mantidos, e não depositados em vasos canopos, como exigia a cultura egípcia, evidencia a má vontade dos embalsamadores. ;No auge das mumificações, no século 10 a.C., os processos eram bem elaborados, porque o objetivo era preservar tecidos e órgãos para a vida eterna. Os pulmões, o fígado, o intestino e o estômago, órgãos que se deterioram facilmente, eram removidos por uma pequena incisão feita no abdômen e tratados com resinas e sais. Depois, eram colocados em vasos, sepultados com o sarcófago;, ensina Wisseman.

Além disso, os embalsamadores retiravam o cérebro pelo nariz do morto. Depois, o corpo era desidratado, lavado, purificado e cuidadosamente enfaixado com diversas camadas de tecido. A riqueza de uma múmia podia ser constatada pelas joias e amuletos que a acompanhavam. Porém, durante o período de ocupação romana, o ritual perdeu força entre os embalsamadores. Segundo Wisseman, múmias dessa época costumam apresentar fraturas provocadas pela falta de cuidado na manipulação do corpo, são menos preservadas e, geralmente, danificadas por insetos, um sinal de que as faixas de linho não foram bem utilizadas.

Apesar de os exames sofisticados conseguirem revelar até a dieta da criança ; que consumia leite, carne e cereais ; os cientistas continuam sem saber a causa da morte. A tomografia mostrou que a vítima sofreu um duro golpe na cabeça. Porém, não havia sinais de hemorragia, por isso, os radiologistas acreditam que o ferimento foi feito depois da morte, provavelmente, pelos embalsamadores descuidados. O serviço rápido, aliás, não deixa de ser uma pista. Wisseman acredita que a criança pode ter perecido depois de uma epidemia, o que explicaria a morte e a aparente vontade dos funcionários fúnebres terminarem o serviço o mais rápido possível, com medo de serem contaminados.


Fascínio
;O que é fascinante sobre as múmias é que nem sempre conseguimos revelar seus segredos rapidamente, então, nos sentimos sempre desafiados;, diz Ruggero D;Anastasio, pesquisador da Universidade de Chieti-Pescara, na Itália. Afirmando que se sente quase como um ;detetive do passado;, ele conta que um dos momentos mais interessantes de sua carreira foi no ano passado, quando ajudou a decifrar o mistério da morte da Múmia de Santa Rosa, como são conhecidos os restos mortais de uma pessoa morta no século 13 a.C. ;Trata-se de uma jovem com idade entre 18 e 19 anos, que sofria de uma rara condição, chamada síndrome de Cantrell, que causa defeitos no diafragma, na parede abdominal, no coração e no osso esterno;, diz.

Segundo D;Anastasio, desconfiava-se que a mulher teria morrido de tuberculose. ;Mas análises detalhadas de um pedaço de tecido da múmia não mostraram sinais de infecção pelo bacilo de Koch ao longo de sua vida;, conta. A equipe de pesquisadores de Chieti-Pescara resolveu submetê-la à tomografia computadorizada. ;O exame revelou que ela tinha divertículo ventricular, um defeito cardíaco associado à síndrome de Cantrell. Havia uma trombose em seu coração o que, provavelmente, a levou à morte por embolia;, conta.

;Pesquisas com múmias revelam que doenças cardiovasculares atormentam a humanidade há milênios;, constata Gregory S. Thomas, diretor do Núcleo de Educação Cardiológica da Universidade da Califórnia em Irvine, que descobriu o primeiro caso de arterioesclerose coronariana da história da medicina. Sua ;paciente;, uma princesa egípcia, morreu há 3,5 mil anos, vítima do depósito de gordura no coração. ;Hoje, temos arsenais para combater esses problemas, mas eles eram realmente fatais no Egito antigo;, diz.

Mistério
Um dos mais famosos ;pacientes; egípcios é o rei Tutancâmon, que morreu antes dos 20 anos, 3,3 mil anos atrás. O chamado ;rei menino; desperta o fascínio de historiadores e médicos, que estão sempre em busca da causa de sua morte. Em 1968, foi realizado o primeiro exame por imagem na múmia ; na época, apenas raios X. Testes posteriores, feitos com ressonância magnética, mostraram que o faraó pode ter morrido vítima de uma infecção adquirida depois de um acidente. Muitos pesquisadores, porém, sustentam que o jovem morreu, na verdade, de malária.