Muito antes de os novíssimos cães de bolso ganharem fama, o melhor amigo do homem já fazia parte do cotidiano da sociedade. Em um estudo divulgado este mês, cientistas de três países analisaram fósseis caninos encontrados onde hoje é a República Tcheca e concluíram que os cachorros convivem com os humanos desde o Período Paleolítico, há cerca de 30 mil anos. A pesquisa confirma resultados de dois artigos anteriores e derruba a tese de que esses animais só teriam sido domesticados depois da última Era Glacial, 14 mil anos atrás. Mais que isso: os pesquisadores acreditam que, além de antiga, a relação com o companheiro de quatro patas foi essencial para a evolução do Homo sapiens.
Os cães pré-históricos foram encontrados em um sítio arqueológico da cidade de Predmosti, no leste da República Tcheca. O achado, na verdade, não é recente: as escavações do que pareciam ser esqueletos de cachorros ocorreram no fim do século 19 e no início do século 20, mas somente agora os cientistas se preocuparam em datar e identificar as ossadas. ;A ideia geral era que os homens caçadores/coletores só tinham começado a domesticar os lobos no fim da Era Glacial. No entanto, o achado do cão de Goyet (na Bélgica), que tem cerca de 32 mil anos, indicou que esse processo teve início muito antes. O cachorro de Predmosti corrobora isso;, explicou ao Correio a pesquisadora Mietje Germonpre, do Instituto Real Belga de Ciências Naturais.
Os cachorros de Goyet (um dos mais antigos encontrados até agora) e de Predmosti (com idade estimada em 27 mil anos) eram muito maiores do que os bichos de estimação de hoje em dia, mas já tinham características semelhantes às de raças de grande porte. Os cães da República Tcheca pesavam cerca de 35kg e tinham uma largura de 61cm de um ombro a outro. ;A forma do crânio se parece com a de um husky siberiano, embora os cães daquela época fossem bem mais pesados do que um husky moderno;, diz a pesquisadora. Esses animais eram descendentes de lobos e sua domesticação foi confirmada depois de uma série de comparações com espécies selvagens que viviam na região.
Os cientistas analisaram três crânios dos cães de Predmosti. ;Eles têm a cabeça significativamente mais curta do que a dos fósseis de lobos e o focinho também é menor. Além disso, a caixa craniana e o palato são maiores em relação aos dos parentes selvagens;, descreve Mietje. O que mais comoveu os pesquisadores, no entanto, não foi a confirmação de que as ossadas eram de cachorros pré-históricos e sim a provável relação entre os animais e os humanos daquela época. Um dos bichos foi enterrado com um grande osso na boca, o que indica a prática de rituais com os amigos de quatro patas.
;Os elementos religiosos (que encontramos) apontam uma profunda conexão entre homens e cachorros;, comenta Mikhail Sablin, pesquisador russo que também participou do estudo.
Laços reforçados
Para a professora Susan Crockford, da Universidade de Victoria, no Canadá, essa amizade começou por interesse, mas se fortaleceu devido ao misticismo dos povos pré-históricos. Segundo Susan ; que investigou ossadas caninas de 33 mil anos encontradas na Sibéria ; os primeiros lobos domesticados eram bem-vindos, pois acabavam com resíduos deixados pelos homens e alertavam contra potenciais perigos, como a presença de ursos. ;As pessoas também devem ter pensado que os primeiros cães tinham poderes mágicos. Para os anciãos da aldeia, que observavam os lobos selvagens se transformarem em amáveis bichos, era óbvio que um ser como esse teria poderes especiais;, supõe Susan.
Com o passar do tempo, a importância religiosa do melhor amigo do homem ficou ainda maior. Embora as ossadas do Período Paleolítico não tenham relação comprovada com outras encontradas anos depois, a conexão com os cães se manteve ao longo dos séculos. Depois da última Era do Gelo, por exemplo, era comum que as pessoas fossem enterradas com seus bichos de estimação. ;A ideia dessa prática era prover o espírito do humano falecido com um espírito canino, que serviria como um ;guia; para a passagem ao outro mundo;, interpreta a professora da Universidade de Victoria.
Todas essas análises e observações, porém, não explicam por que os humanos deixaram que os primeiros lobos se aproximassem. Afinal, as duas espécies eram concorrentes na busca por alimentos ; uma tarefa que não devia ser nada fácil no ambiente pré-histórico. A cientista Pat Shipman, da Universidade de Penn State, na Pensilvânia, credita o começo dessa relação ao conhecimento que os homens acumularam ao observar os animais e à confiança que eles adquiriram com esse aprendizado. ;Acho que alguém, provavelmente, trouxe um filhote de lobo para casa, e isso deve ter acontecido várias vezes;, especula Pat, uma das maiores especialistas em ecologia de ambientes antigos. ;Ninguém pensou em criar os bichos, mas, com o passar do tempo, surgiu um sistema no qual ;bons; filhotes, ou menos agressivos, passaram a ser alimentados e protegidos, enquanto os outros foram mortos e, talvez, comidos;, detalha.
A cientista vai ainda mais longe. Para ela, esses animais acabaram contribuindo para que os humanos desenvolvessem a linguagem. Em um artigo publicado em maio na revista New Scientist, Pat aponta que uma das primeiras formas de comunicação, a pintura rupestre, se concentrava em registrar momentos dos homens com seus animais domesticados ; aí entram outros que surgiram depois, como ovelhas e bichos de carga, por exemplo. ;A antiga associação entre o Homo sapiens e os cachorros foi um bom negócio para ambas as espécies. Mesmo que os animais não vivessem dentro de casa, mantê-los em assentamentos foi uma grande vantagem;, diz a especialista.
Pequenos e chiques
Nos últimos anos, muitas celebridades passaram a circular por aí com seus cãezinhos a tiracolo. São malteses, chihuahuas e yorkshires, entre outras raças, que cabem em qualquer lugar e não costumam fazer alvoroço. Mesmo fofos e quietinhos, esses bichos precisam de uma série de cuidados. Como são muito pequenos, costumam ser mais vulneráveis a doenças.
Fonte de história
O sítio de Predmosti é um dos mais ricos do mundo. Escavado desde meados de 1880, forneceu aos cientistas dezenas de esqueletos humanos ; parte deles foi destruída em um incêndio durante a Segunda Guerra Mundial. Em Predmosti, também foram encontradas mais de mil ossadas de mamute, além de fósseis de cães.