O último ancestral comum (Luca, na sigla em inglês) é o ser vivo que deu origem a todos os outros que existem atualmente. Pouco se sabe sobre esse organismo, que teria vivido na Terra há cerca de 3,5 bilhões de anos. Há divergências na comunidade científica sobre como seria esse ser: enquanto alguns pesquisadores alegam que ele é uma junção simples de moléculas, outros veem uma estrutura mais complexa. Um estudo feito por pesquisadores da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, traz uma descoberta que amplia a discussão: o Luca, segundo os autores, seria sofisticado a ponto de sua estrutura poder ser considerada uma célula.
Na pesquisa, publicada na última quinta-feira na revista científica Biology Direct, foram estudadas células de micróbios, como forma de compreender quais características moleculares eram comuns nas criaturas dos três super-reinos (ou domínios) existentes. Super-reinos são uma classificação científica baseada na diferença de evolução do genoma dos seres em todo o planeta. O líder do estudo, Manfredo Seufferheld, integrante da Sociedade Americana de Microbiologia e professor de ciências agrárias da Universidade de Illinois, explicou ao Correio que o grupo descobriu uma organela (estrutura envolta por membrana) ; a acidocalcisoma ;, que está presente em todos os seres vivos. ;A acidocalcisoma armazena um tipo específico de fosfato, denominado próton pirofosfatase vacuolar (V-H%2bPPase), que foi o elemento a fundamentar a teoria de que a organela é antiga e universal. Isso porque o V-H%2bPPase se encontra no organismo de todos os seres vivos;, descreve.
Um dos coautores do estudo, Gustavo Caetano-Anollés, ressaltou, em comunicado à imprensa, que muitos cenários poderiam explicar isso. ;O mais provável seria a enzima já existir antes mesmo de a diversificação ter começado na Terra;, assinalou. Caetano-Anollés, que também é professor de ciências agrárias da Universidade de Illinois e integrante do Instituto de Biologia Genômica do mesmo local, acredita que a proteína estava no último ancestral comum desde o começo e foi herdada em todas as linhagens seguintes.
Professor de entomologia da universidade norte-americana e também autor da pesquisa, James Whitfield diz, no mesmo comunicado, não se poder ;presumir; que toda a história da vida é apenas a construção e montagem de coisas. ;Alguns atribuem o fato de as bactérias serem tão simples à necessidade de terem de viver em ambientes extremos e se reproduzir absurdamente rápido. Desse modo, elas realmente podem ser versões reduzidas do que havia originalmente;, estima o entomologista. Whitfield, baseando-se nesse ponto de vista, relata que as bactérias teriam se tornado genética e estruturalmente mais simples do que seriam originalmente. ;Podemos ter subestimado o quão complexo esse ancestral comum era.;
Para Seufferheld, esse resultado é extraordinário e traz à luz a possibilidade de que a compartimentalização da célula ; ou seja, a subdivisão das estruturas que a compõem ; já estaria presente no Luca. Ele afirma que um dos elementos mais surpreendentes da pesquisa foi descobrir que organelas já existiam no último ancestral comum. ;Acreditávamos anteriormente que as organelas só haviam surgido muito depois na evolução, especialmente nas células eucariontes (nas quais o núcleo é separado do resto da célula por uma membrana e presentes em seres mais complexos, como plantas e animais);, comenta o professor argentino.
A professora de microbiologia da Universidade de Brasília (UnB) Cynthia Kyaw confirma a afirmação de Seufferheld de que a presença de organelas sempre foi considerada uma característica exclusiva de seres do super-reino Eukariota, ;embora nos últimos anos tenham sido descritas possíveis organelas em procariotos ; bactérias e archaeas;. Por essa razão, imaginava-se que o Luca seria desprovido dessas estruturas.
Visão anterior
;Há uma visão comum de que o último ancestral comum seria uma entidade muito simples, da qual a vida teria evoluído. Mais recentemente, porém, grupos de cientistas passaram a defender que era um organismo muito mais complexo, inclusive em sua estrutura genética e nas proteínas presentes na célula;, comenta o pesquisador.
Questionado sobre como seria, visualmente, o último ancestral comum, Seufferheld é taxativo: ;Ninguém tem uma foto do Luca, pois não há registros fósseis dele, mas, provavelmente, ele foi um organismo unicelular, pois o mecanismo extracelular necessário para a existência de múltiplas células só foi desenvolvido milhões de anos depois, com os Eukariotas;, afirma. Cynthia confirma a falta de conhecimento na área científica sobre como seria o Luca. ;Mas como bactérias e archaeas são estruturalmente mais simples que as células eucarióticas, imagina-se que o Luca seria também estruturalmente simples;, relata.
A professora da UnB ressalta que a importância do estudo poderá ser grande no futuro, mas considera os dados apresentados na pesquisa ainda insuficientes para garantirem que o último ancestral possuía organelas. ;Acho que os dados apresentados são questionáveis. Eles dizem que no domínio archaea parece haver essa organela, mas ainda não estaria comprovado. Assim, ficam muitas especulações como base de uma hipótese tão firme quanto a deles, de que o Luca teria sim a acidocalcisoma e, portanto, teria organização celular mais complexa;, adverte Cynthia.
A especialista em microbiologia alerta para a necessidade de outros estudos na área para confirmar os resultados dessa pesquisa, antes de a comunidade científica determinar a complexidade do último ancestral e reformular o conhecimento acedêmico atual. ;Talvez possamos até especular uma possibilidade como essa, mas não concluir e inferir sobre a complexidade do Luca.;