Um dos distúrbios mais estudados dos últimos tempos, o transtorno de deficit de atenção e hiperatividade (TDAH) ocorre devido a variações genéticas que também podem provocar o autismo. Em um artigo publicado ontem na revista Science Translational Medicine, pesquisadores comprovaram, pela primeira vez, algo que os médicos já percebiam nos consultórios: a ligação entre o TDAH e patologias psíquicas mais graves, entre elas, as do espectro autista. A equipe de cientistas canadenses encontrou exatamente a mesma alteração em pedaços do DNA de nove pacientes autistas e de cinco com o problema da falta de concentração. Embora a amostra ainda seja pequena, ela representa o primeiro passo para entender com mais clareza a incidência de doenças mentais e neurológicas.
O TDAH atinge de 3% a 5% das crianças, com maior prevalência entre os meninos. ;São pequenos muito inquietos, agitados, que não conseguem se concentrar e, consequentemente, têm dificuldades para aprender;, explica a psiquiatra Ana Hounie, pesquisadora da Universidade de São Paulo. A doença tem alta taxa de comorbidades, ou seja, frequentemente, vem associada a outros males, como a ansiedade, os transtornos de comportamento e, até mesmo, a dependência química. O autismo é outra dessas patologias. Seus sintomas incluem a fixação por determinado assunto e a resistência a se envolver com novas atividades.
Essas doenças são provocadas por fatores genéticos, associados a causas ambientais. ;O pai ou mãe de uma criança com deficit de atenção, provavelmente, tiveram o mesmo problema na infância, assim como gêmeos idênticos têm mais probabilidade de desenvolver o TDAH que os não idênticos;, detalha Russell Schachar, do Hospital para Crianças Doentes de Toronto, no Canadá, um dos autores do estudo divulgado ontem. Mesmo com essas pistas, contudo, a ciência ainda não conhece todos os genes responsáveis pelos distúrbios. O pesquisador e outros colegas canadenses partiram, então, para uma busca mais detalhada das partes do código genético que causam a falta de concentração.
Para isso, eles adotaram técnicas sofisticadas de mapeamento do genoma, com máquinas capazes de oferecer uma resolução melhor de pedaços menores das amostras. ;Nós estávamos interessados em encontrar cópias raras de genes que nunca foram vistas na população em geral e que existem apenas no DNA das pessoas com deficit de atenção;, explicou Schachar ao Correio. Das 248 amostras, 89% delas tinham variações nos seguintes genes: ASTN2, ASTN2-introni, TRIM32, CHCHD3 e MACROD2, além da região 16p11.2 da cadeia. ;Em quase 90% dos genomas estudados, havia essa variação de número de cópias raras e poucas apresentavam mutações propriamente ditas, que são comuns em outras desordens;, comenta o especialista.
A alteração do número de cópias, contudo, existe em doenças psíquicas complexas, como a esquizofrenia e o transtorno bipolar ; fato que intrigou a equipe canadense. Para tirar a prova dos nove, os pesquisadores coletaram amostras de genoma de 348 pessoas com autismo e realizaram a mesma análise minuciosa do material. Surpreendentemente, o código genético de nove dos participantes tinha exatamente a mesma característica que o coletado em cinco voluntários com o transtorno de deficit de atenção.
Segundo os especialistas, o material identificado no grupo com TDAH aumenta o risco de incidência de doenças psiquiátricas do mesmo porte do autismo. Isso ajudaria a explicar por que é comum ver uma criança com autismo e TDAH ao mesmo tempo e, não raro, um menino ou menina com deficit de atenção associado a outros sintomas do espectro autista. ;Nós encontramos um marcador genético das duas doenças, mas não para a vasta maioria dos pacientes. Agora, precisamos olhar mais profundamente para novas amostras e procurar esse sinal em níveis ainda mais profundos do genoma;, afirma o pesquisador.
Aplicações
A descoberta canadense ainda não tem grandes implicações clínicas. Embora a análise do DNA possa determinar o diagnóstico do deficit de atenção, por exemplo, lançar mão desse recurso seria desnecessário. ;Há uma série de testes psíquicos e psicológicos que definem o TDAH e esse sistema funciona bem;, esclarece Russell Schachar. O especialista acredita, entretanto, que as revelações do estudo podem contribuir para o tratamento do distúrbio já em curto prazo. ;Se você confirmar que o paciente tem sinais genéticos comuns ao TDAH e ao autismo, é possível receitar um medicamento mais eficiente;, sugere.
César Moraes, coordenador do Departamento de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), acredita que a pesquisa publicada ontem dá um passo fundamental na busca por marcadores genéticos que caracterizem definitivamente as duas doenças. ;Esse artigo é muito importante, pois consegue demonstrar que há fatores genéticos comuns ao diagnóstico de TDAH e aos transtornos do espectro autista;, comenta. Schachar vai ainda mais longe: com esse achado, aumentaram os desafios para a medicina, que agora precisa encontrar fatores de risco presentes em mais de uma doença psíquica.
E os trabalhos já começaram. O especialista canadense e seus colegas estão coletando amostras do genoma de 5 mil pessoas com qualquer indício de desordem mental. A ideia é avaliar o material com grande acuidade para identificar qualquer traço compartilhado entre as patologias. Segundo Schachar, esse levantamento muda, inclusive, a forma de se fazer ciência. ;No passado, as pessoas excluíam amostras de pacientes que tinham sintomas tímidos das doenças, mas nós vamos recrutar casos com qualquer sinal de problemas neuropsiquiátricos e procurar por suas variações de cópias raras. Se acharmos, vamos investigar isso em suas famílias também;, adianta.
Responsabilidade compartilhada
A pesquisa conduzida no Hospital da Criança Doente de Toronto, em parceira com universidades do Canadá, se baseia no conceito de pleiotropismo. Isso acontece quando uma parte específica de um gene pode estar associada tanto à presença de sintomas de uma doença quanto à de outra patologia. No caso desse estudo, os genes compartilham a ;responsabilidade; pelo TDAH e pelo autismo.