Os pacientes têm idades, nacionalidades e enfermidades diferentes. Alguns sofrem de estranhas febres, outros apresentam sintomas múltiplos e ainda há aqueles que chegam a ser acometidos por fortes distúrbios mentais. Em comum, um fato crucial: todos eles estão mortos há séculos ou mesmo milênios. Nada mais pode ser feito. Nem por isso deixam de atrair a curiosidade de médicos, que agem como verdadeiros detetives para descobrir o que levou ao túmulo pessoas como o compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart, o naturalista Charles Darwin ou o imperador francês Napoleão Bonaparte.
Assim como historiadores se debruçam sobre os detalhes da vida de uma pessoa para escrever sua biografia, médicos de várias especialidades são movidos pela curiosidade e usam todas as armas disponíveis para diagnosticar seus pacientes involuntários. O ofício de médico dos mortos é levado tão a sério que, desde 1995, a Faculdade de Medicina da Universidade de Maryland organiza conferências anuais de clinicopatologia histórica para estudo de casos.
A ideia partiu de Philip Mackowiak, vice-presidente da faculdade e diretor do congresso. ;Muitos anos atrás, eu encontrei um artigo no Maryland Medical History Journal com uma descrição detalhada da doença que matou Edgar Allan Poe. Então pensei: ;Não seria intrigante apresentar esse caso na universidade sem dizer quem era?;;, conta o médico à reportagem. Em maio passado, o pai da evolução, Charles Darwin, foi o alvo dos pesquisadores. Se, durante a infância e a adolescência, o naturalista inglês gozava de excelente saúde, a não ser por eventuais gastrites e erupções na boca e nas mãos, no fim da vida ele sofria de dores inexplicáveis, até morrer de falência cardíaca em 1872, aos 73 anos. Embora a causa da morte seja conhecida, o que levou seu coração parar de bater permaneceu um mistério por mais de um século.
Aos 22 anos, Darwin ingressou, por pura aventura, na expedição científica que o levaria a propor, mais tarde, a teoria da origem das espécies. Nas viagens a bordo do navio Beagle, ele constantemente reclamava de vômitos crônicos, dores abdominais e distúrbios gastrointestinais, algo que o acompanhou durante toda a vida. Com base nos relatos feitos pelo próprio Darwin sobre seus incômodos e considerando também o estilo de vida do cientista, o gastroenterologista Sidney Cohen, diretor do centro de pesquisas da Faculdade de Medicina Thomas Jefferson, na Filadélfia, foi encarregado do diagnóstico. ;Nunca peguei um caso como o de Darwin. Foi bastante diferente porque não há nenhuma prova física, como exame de raios X ou hemogramas. Fiz um diagnóstico puramente baseado em sintomas e análises de sua jornada de vida;, explica Cohen ao Correio.
Para o especialista, Darwin não poderia ter apenas uma doença, mas sofreria de múltiplos males. Ele fechou o quadro do cientista em três principais problemas: síndrome do vômito cíclico, úlceras provocadas pela bactéria H.pylori e, por último, doença de Chagas. ;Chagas pode ser descrita como uma doença cardíaca, pois degenera o coração. Tanto essa doença quanto a H.pylori podem ter sido contraídas em um mesmo local e geralmente elas realmente aparecem juntas;, diz, lembrando que Darwin esteve em diversas partes do mundo, incluindo a América do Sul, o Pacífico e a África.
Difícil consenso
A teoria de Cohen foi bem aceita, mas nem sempre isso acontece no ramo da clinicopatologia histórica. O músico Wolfgang Amadeus Mozart, por exemplo, assim como Napoleão Bonaparte e o faraó Tutancâmon, já foi alvo de diversas pesquisas com resultados distintos. No mês passado, um estudo publicado na revista especializada Medical of performing artists sugeriu que o compositor foi vítima de deficiência de vitamina D. Morto aos 35 anos, em 1791, Mozart sofreu de diversos males infecciosos, como febre tifoide, varíola e doenças do trato respiratórias, todos muito comuns em sua época.
O que exatamente matou o gênio da música continua um mistério ; já disseram que o compositor foi assassinado ou que foi vítima de falência renal. Mas, de acordo com o novo artigo, a falta de vitamina D, que não é produzida pelo organismo, mas adquirida por meio de alimentos e exposição ao Sol, foi crucial para a saúde de Mozart. Em entrevista ao site Discovery.com, o autor do estudo, o cirurgião ortopédico aposentado William Dawson, afirmou que, além de a Áustria ser um país pouco ensolarado, músicos costumam ficar confinados em lugares fechados, como auditórios e salas de estudo.
Dawson contou que reviu 81 pesquisas médicas sobre o que teria acontecido a Mozart no fim de sua breve vida. Embora tenha encontrado explicações convincentes sobre diversas doenças que acometeram o músico, ele concluiu que o excesso de infecções das quais o compositor sofria só podiam estar relacionadas à falta de vitamina D. ;Diversos estudos recentes conectam os níveis adequados de vitamina D no organismo com menos riscos de gripes, pneumonias, doenças cardiovasculares, cânceres e males autoimunes, entre outros;, sustentou.
Casos como os de Darwin e Mozart parecem até fáceis perto de os de pessoas que morreram não há séculos, mas há milênios. O professor de medicina da Universidade de Washington Jan Hirschmann aceitou o desafio de determinar a causa da morte de uma figura bastante controversa da história: o rei Herodes, tachado como brutal, paranoico e cruel. De acordo com a Bíblia, ele seria o responsável por uma chacina de crianças, na tentativa de impedir o nascimento de Jesus Cristo.
;Herodes morreu de doença renal crônica, provavelmente complicada pela gangrena de Fournier, infecção causada por diversos micróbios que pode levar à falência dos órgãos;, diz Hirschmann ao Correio. Ele conta que chegou ao diagnóstico lendo textos antigos que descreveram os últimos dias do rei. ;Cheguei a pensar em outra doenças, mas essa era a melhor explicação;, diz o médico, completando que diagnosticar um paciente como Herodes foi um dos maiores desafios de sua carreira.
Rei Tut
As teorias sobre a morte, aos 19 anos, do faraó que governou o Egito até 1324 a.C. são diversas. Vão de assassinato a uma infecção provocada por uma ferida mal curada. Há dois anos, o cientista e atual ministro de Antiguidades do Egito, Zahi Hawass, anunciou que Tut teria morrido vítima de uma combinação de malária e necrose óssea, condição caracterizada por fraqueza e morte dos tecidos do osso.
Câncer de estômago
A morte do imperador francês tem sido motivo de discussão entre os cientistas. Já foi proposto que Napoleão morreu envenenado por arsênio, pois esse elemento foi encontrado em amostras de seu cabelo. Porém, um estudo mais recente, publicado há três anos, sugere que ele foi vítima de uma hemorragia gastrointestinal decorrente de um câncer de estômago.