Jornal Correio Braziliense

Ciência e Saúde

Cientistas curam animais hemofílicos com técnica que corrige falhas no DNA

Considerada a maior aposta para o tratamento de centenas de doenças causadas por erros no DNA, a terapia gênica deu um salto com a publicação de um artigo na edição on-line da revista especializada Nature. Pela primeira vez, cientistas conseguiram curar a hemofilia em animais vivos com uma nova técnica, chamada genome editing, ou ;edição do genoma;. A metodologia já havia sido aplicada em células, mas apenas aquelas cultivadas in vitro.

;A edição do genoma é um avanço em relação às estratégias de reposição genética de uma mutação, porque ela consegue restabelecer a função normal de um gene in loco, reduzindo os riscos associados à injeção aleatória de substâncias em todo o genoma;, explica ao Correio a hematologista e especialista em terapia gênica Katherine A. High, principal autora do artigo e médica do Hospital Infantil da Filadélfia. ;Outra questão importante é que terapias com um gene específico como alvo têm sido limitadas, historicamente, às células-tronco embrionárias. Dessa vez, conseguimos usar a técnica em ratos vivos.;

A hemofilia é uma alteração genética no cromossomo X, caracterizada por um defeito na coagulação. A pessoa com a doença não tem em quantidade suficiente uma proteína que ajuda na coagulação do sangue, e o resultado disso são sangramentos constantes e involuntários, que podem evoluir para hemorragias e até mesmo incapacitar fisicamente. Descrita pela primeira vez em 1828, a doença atinge 11,8 mil brasileiros, sendo cerca de 500 deles no Distrito Federal.

Para consertar o defeito genético, a equipe de High, com cientistas da Sangamo BioSciences Inc., utilizaram enzimas desenhadas por bioengenheiros, chamadas ;dedos de zinco nucleases;, do inglês zinc finger nucleases (ZFNs). As fitas de DNA são formadas por proteínas identificadas por letras, e o trabalho dos ZFNs assemelha-se ao de um corretor de texto de computador: colocar essas letras na ordem correta para que as sequências alteradas passem a funcionar normalmente. Os ZFNs são pequenas proteínas estabilizadas por íons de zinco e estão associados a diversas tarefas celulares. Entre elas, a de reparo do DNA.

O trabalho dos bioengenheiros foi desenhar ZFNs que se ligassem a um gene específico, o fator 9, cuja mutação leva à hemofilia B. As duas formas principais da doença, que atingem quase exclusivamente o gênero masculino, são as hemofilias A e B, causadas, respectivamente, por defeitos no fatores 8 e 9. Os pacientes recebem infusões frequentes de proteínas coagulantes, um procedimento caro e que, eventualmente, estimulam o organismo a produzir anticorpos que combatem os benefícios do tratamento.

Vírus transportadores
No estudo de High, os pesquisadores utilizaram ratos modificados geneticamente, que não tinham níveis detectáveis de fator 9 no organismo. Dessa forma, os cientistas fizeram com que os animais desenvolvessem a hemofilia B. A cientista e seus colegas, então, desenharam dois vetores, os vírus que levam os genes sadios para o DNA, para transportar as proteínas até as partes doentes do genoma.

O geneticista Luk Vandenberghe, pesquisador sênior do Programa de Terapia Gênica do Centro de Oftalmologia Molecular F.M Kirby, que não participou do estudo, conta que primeiramente é preciso selecionar os vírus que têm maior probabilidade de transportar o gene com eficiência. Em seguida, os bioengenheiros o modelam geneticamente de forma a eliminar qualquer característica que possa deixá-los perigosos. ;O que antes era um vírus torna-se o que chamamos de vetor;, disse ao Correio.

Dois vírus foram usados para fazer o transporte. Um deles levava ZFNs para editar as letras embaralhadas do genoma, enquanto o outro enviava ao organismo um gene fator 9 sadio. Como diferentes mutações em um mesmo gene podem causar a hemofilia, as proteínas de edição trabalharam bastante: tiveram de repor sete sequências erradas, cobrindo 95% das mutações que levam ao desenvolvimento da hemofilia B. Injetados no organismo dos ratos, os vetores viajaram até o fígado, órgão onde os fatores coagulantes do sangue são produzidos. Os animais que receberam a terapia de edição do genoma começaram a produzir naturalmente o fator 9, como se fossem sadios. Já os do grupo de controle, que receberam apenas a versão normal do gene, não tiveram melhoras significativas.

Passados oito meses do estudo, os ratos tratados com o ;corretor ortográfico; do DNA continuavam bem, sem efeitos colaterais no fígado. Isso significa, de acordo com High, que o tratamento é bem tolerado pelo organismo. Ela diz que o objetivo do grupo é fazer novos estudos até que a terapia seja aplicada de forma efetiva e segura em humanos com hemofilia e outras doenças genéticas provocadas por mutações em um único gene. A geneticista avisa, porém, que esse é um processo lento, que pode levar anos para se tornar realidade. Para a cientista, é aí que reside o futuro da terapia gênica.