Quais devem ser os interesses de um estudante? Gostar de cantar? Ser fascinado por literatura? Achar divertido passar horas montando um computador? Certamente, pais e professores não se incomodam com atividades desse tipo, mas elas estão longe de ser valorizadas como o bom desempenho nas provas de fim de ano ou no vestibular. Um erro grave, alertam especialistas, com respaldo de uma das mais importantes revistas científicas do mundo.
A edição desta semana da Science apresenta um editorial com críticas à desvalorização dos interesses e habilidades individuais dos alunos por parte das escolas. Para Deborah Stipek, autora do texto e pesquisadora da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, o sistema educacional atual, baseado na concorrência e no desempenho em testes, pode prejudicar, e muito, a formação de grandes pensadores. Segundo a especialista, essa forma de ensino promove um verdadeiro extermínio de grandes mentes.
Em uma teleconferência de imprensa, da qual o Correio participou, Deborah afirmou que a maneira como a educação é organizada na atualidade faz com que potenciais vencedores do prêmio Nobel sejam perdidos antes mesmo do fim da educação básica, já que o modelo de ensino ;massacra; qualquer outro interesse que não seja o cobrado nos exames de admissão das universidades. ;Acho que os pais e estudantes estressados não devem pensar que ir bem nos testes ou entrar em universidades de ponta garantam que a pessoa terá sucesso. É importante desenvolver habilidades e talentos. Isso sim tem um papel fundamental no futuro de alguém;, defende.
Para ela, a pressão excessiva por desempenho sobre crianças e adolescentes, em todos os níveis de ensino, extermina o prazer pela busca do conhecimento. ;Lecionei durante 22 anos, e quando dizia aos alunos que haveria um teste, as primeiras perguntas que surgiam era sobre o número de questões, quantas alternativas haveria e quanto tempo teriam para respondê-las. Nada sobre o conteúdo;, lembra a especialista. ;As crianças, de alguma forma, acostumaram-se a lidar com essa pressão. Elas entram na pré-escola extremamente entusiasmadas pelo conhecimento e, por volta do terceiro ano, já estudam para tirar boas notas, não porque é divertido;, completa.
Menos decoreba
Apesar de a avaliação da pesquisadora ser baseada em observações da sociedade norte-americana, no Brasil o problema não é diferente. Uma pesquisa feita pela Universidade São Marcos, de São Paulo, mostrou que 40% das crianças em idade escolar estão estressadas. Outro levantamento semelhante, feito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também identificou o problema. Pelo menos uma em cada três crianças pesquisadas apresentava sintomas de estresse, em boa parte em função do excesso de pressão e atividades escolares.
A coordenadora-geral de Ensino Médio do Ministério da Educação (MEC), Sandra Regina Garcia, reconhece o excesso de competitividade e pressão nos estudantes em detrimento de uma formação mais humanística, que leve em conta os interesses e as habilidades dos alunos. ;Percebo esse movimento muito mais intenso nas escolas privadas, que buscam figurar na lista das que mais aprovam nos vestibulares;, avalia especialista. ;A educação pública brasileira, historicamente, tem um papel muito mais focado na cidadania e na formação global;, acredita.
O problema, no caso brasileiro, é que há poucas vagas nas melhores universidades, lembra José Augusto de Mattos, presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares. ;Quem elabora as seleções é o Ministério da Educação e as universidades. Se a formação é muito direcionada e competitiva, é porque o sistema funciona assim;, argumenta. ;Se um aluno quiser ser aprovado no vestibular, ele terá de se dedicar e focar nos estudos;, garante.
Embora discordem sobre a responsabilidade pela excessiva competitividade no ensino, Sandra Garcia e José Mattos concordam quando o assunto é a solução para a mudança. Ambos acreditam que ela está no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). ;O exame utiliza um modelo de avaliação mais focado nas capacidades de análise e julgamento. À medida que for sendo ampliado, ele tende a possibilitar a flexibilização do ensino, em todos os seus níveis;, afirma a coordenadora da MEC. ;Por abolir o ;decoreba;, creio que esse modelo de avaliação servirá de base para outros testes e para a forma como as escolas se organizarão;, completa o diretor da Fenep.
Pais divididos
A questão também é polêmica entre os pais. Para Lúcia Mello, 39 anos, mãe de três filhos que estudaram tanto na rede pública quanto em escolas particulares, embora o ideal fosse uma educação mais humanística, as exigências do mundo contemporâneo são outras. ;A realidade da competição é inegável, por isso acho importante essa questão ser trabalhada dentro da escola;, opina. Para ela, mesmo a competição transmite lições importantes. ;Ter que se dedicar, estudar e dar o melhor de si são questões que as crianças precisam aprender. Ninguém vai bem, em nenhuma área, sem cultivar esses hábitos, e o ensino que foca nas avaliações transmite isso;, opina.
Ideia que, no entanto, não é compartilhada por Herbert Fernandes Viana, 43 anos. Pai de Camila, 17, e João Pedro, 9, ele acredita que a educação deve ser, acima de tudo, focada em valores. ;Uso o meu caso como exemplo. Quando eu estava na escola, voltei meus estudos para história, ciência e geografia, áreas de que gostava. Posso não ter sido o melhor aluno da turma, mas acabei descobrindo do que gostava e ganhando prazer em estudar isso. Na faculdade, não tive dificuldade em tirar boas notas exatamente porque o estudo era interessante e divertido;, conta o arquiteto. ;Hoje, com meus filhos, tento transmitir a mesma mensagem. Ter responsabilidade, mas estudar muito mais por prazer do que pelas notas.;
Para a coordenadora do Centro de Pesquisas sobre a Infância e a Adolescência (Cenpe) da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), Maria Beatriz de Oliveira, é preciso ressignificar a educação. ;É preciso redescobrir o significado de ir à escola, de estudar. Mercado de trabalho, preconceitos e status social são questões que devem deixar de nortear as políticas educacionais;, afirma a especialista. ;A sociedade valoriza muito mais o trabalho cooperativo, o trabalhar em grupo, mas a escola forma alunos muito mais focados na competição e no trabalho individual;, avalia.
Para ela, a dicotomia entre o que a escola estimula e o que é exigido pela sociedade acaba eliminando a possibilidade de as crianças traçarem seus próprios caminhos. ;Quem disse que é preciso ser o melhor aluno, frenquentar a universidade mais renomada ou fazer mil atividades extraclasse para ser uma pessoa de sucesso?;, questiona, fazendo coro com sua colega norte-americana. ;A maioria dos grandes pensadores que deixaram um legado para a humanidade seguiram caminhos muito diferentes do convencionalmente estabelecido. Tiveram seu tempo e fizeram o que fizeram unicamente porque gostavam daquilo e não por uma imposição social;, conclui Maria Beatriz.