Nas barbearias da então colônia portuguesa, cortava-se cabelo, aparavam-se bigodes e, de quebra, era possível arrancar um dente inflamado, ;afinar; o sangue com sanguessugas ou extrair uma verruga incômoda. Como no resto do mundo, no Brasil, os primeiros cirurgiões não tinham formação e a tarefa de sujar as mãos ficava com a ;escória; da sociedade: escravos ou cristãos novos que fugiram da inquisição de Portugal.
A gravura O cirurgião negro colocando ventosas, de Jean-Baptiste Debret, dá uma ideia de como as coisas funcionavam. Deitado no chão de uma rua não identificada do Rio de Janeiro, um paciente se submete a cinco aplicações de ventosas nas costas (duas delas, já entupidas de sangue, foram descartadas), enquanto o ;doutor; aplica a mesma técnica na cabeça de outro homem. Um terceiro aguarda o efeito, com as ventosas nas têmporas. A cena, habitual nos idos de 1800, é observada com desinteresse por um provável mendigo.
;Os cirurgiões eram considerados inferiores. Eles não iam para universidades, não aprendiam latim;, observa Elaine Alves, professora da Universidade de Brasília (UnB) e membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina. Até as roupas que usavam eram diferentes das dos médicos: vestes mais curtas, para deixar claro sua posição pouco privilegiada. A cirurgiã pediátrica conta que, até hoje, embora na prática os cirurgiões e clínicos compartilhem o mesmo status, na Inglaterra, o tratamento formal que recebem ainda é diferente. Médicos são chamados de doctors (doutores), enquanto os cirurgiões têm de se contentar com um mister (senhor).
Até o século 19, a medicina e a cirurgia brasileira reproduziam o modelo europeu. Entre os cirurgiões, havia uma pequena diferença. Dentro da insignificância a que eram confinados, os mais importantes amputavam membros. Os barbeiros ; esses, sim, a escória da escória ; eram responsáveis por arrancar verrugas, fazer sangrias e tirar dentes. ;A clientela dos barbeiros era bem maior, já que eles também faziam a barba e cortavam os cabelos;, brinca Elaine.
;No século 17, as operações eram essencialmente mutiladoras. Para se ter uma ideia, o instrumental do cirurgião era uma faca que parecia uma foice grande, o bisturi de então, para fazer as amputações dos feridos de guerra, que já estavam com necroses e infecções;, diz Paulo Tubino, professor emérito da UnB e membro do Colégio Americano de Cirurgia. ;O arsenal dele era isso e ferro em brasa para aparar o sangue;, relata. ;A cirurgia ainda era o último recurso;, lembra.
Religião e guerras
Onde havia colônias jesuítas, os padres faziam as vezes de doutores. A historiadora Juliane Serres, diretora do Museu de Medicina do Rio Grande do Sul, conta que os membros da ordem de Inácio de Loyola chegaram a escrever tratados de cirurgia. ;Provavelmente, eles mesmos operavam os pacientes;, diz. Um desses compêndios do século 17 encontra-se no Rio Grande do Sul, na biblioteca da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
O sul do país, aliás, era um verdadeiro centro de prática da cirurgia. Por causa das guerras que marcam a história da região, como a Revolução Farroupilha e as batalhas de fronteira, eram realizadas muitas operações em soldados. No século 19, montavam-se hospitais de campanha e, sem anestesia nem assepsia, os cirurgiões tentavam curar feridas e arrancavam membros com equipamentos prosaicos, como serrotes de construção civil.
Foi por essa época que o cenário da cirurgia no Brasil começou a mudar. Com a vinda da corte de Dom João VI para o Rio de Janeiro, em 1808, o cirurgião-mor do Reino, José Correia Picanço, recomendou a Sua Majestade que instituísse escolas de medicina no país. As primeiras foram construídas no mesmo ano, no Rio e em Salvador. Duas décadas depois, virariam faculdades. A discriminação, porém, continuava. A escola era de medicina e cirurgia. Ou seja, as profissões continuavam separadas. ;Os cirurgiões estudavam por menos tempo e eram considerados inferiores;, diz Juliana Serres.
Nos anos 1800, porém, mesmo subestimados pelos colegas, os cirurgiões assistiram ao florescimento da prática. ;O século 19 é considerado o século dos cirurgiões, porque houve o controle da hemorragia, a assepsia, a anestesia com éter. Esse foi o grande século da mudança. Foi um salto, não só para a cirurgia, mas para a humanidade. Acabou a infecção, acabou a dor;, observa Paulo Tubino. ;Foi fundamental para a cirurgia se desenvolver. A operação em cavidades seria impossível sem a anestesia;, completa Elaine.
Um dos pioneiros no Brasil da cirurgia pediátrica, Tubino diz que, a partir desse momento, a área se desenvolveu e o país acompanhou o novo movimento mundial. Graças aos avanços anteriores, o século 20 começou mais favorável. Em 1920, foram criadas as primeiras especialidades da cirurgia e, em 1929, fundou-se o Colégio Brasileiro de Cirurgiões. Um dos grandes mestres do colégio, diz Tubino, foi Alfredo Monteiro, que inaugurou uma nova maneira de operar. ;Ele dava ênfase maior ao ato cirúrgico, não cheio de sangue, feio. A operação era bonita, limpa, elegante;, diz o médico.
Disputas
O colégio, porém, também foi um ambiente de rivalidades. Na década de 1950, quando cirurgiões começaram a advogar a necessidade de se criar o ramo da cirurgia pediátria, houve grande resistência interna. Os cirurgiões de adultos não queriam perder mais pacientes. ;Para se ter uma ideia, quando saiu a primeira tabela do Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social, órgão que então fazia os repasses financeiros) para pagar as operações de convênio, as feitas nas crianças, fossem de crânio ou tórax, eram enquadradas como pequenas cirurgias. Parece piada, mas é verdade;, diz.
Outro nome que o cirurgião destaca é o de Edmundo Vasconcelos. ;O cirurgião, infelizmente, não adianta negar, tem poucos direitos e muitos deveres. O Vasconcelos dizia que o cirurgião só tinha deveres;, conta. Aos poucos, os profissionais brasileiros também começaram a valorizar a humanização. ;Os cirurgiões de antigamente eram muito ;chega para lá;, eram ;quase deuses;;, recorda Tubino. Houve muitas exceções. Entre elas, Octavio Freitas Vaz, um dos primeiros a defender que o paciente não poderia ficar sozinho nas internações. Quando era estudante, Paulo Tubino visitou a unidade pediátrica do Hospital Estadual Jesus, dirigido por Vaz. ;Na época, era proibido internar outras pessoas juntas, mas, ali, as mães ficavam. Porque o doutor Vaz dizia ;ou deixa ou mato;. Olhei para o lado e vi um cirurgião sentado no chão da enfermaria, brincando com uma criança. Eu nunca tinha visto isso antes.; Era o último ingrediente que faltava para a cirurgia brasileira se igualar às melhores do mundo.