Jornal Correio Braziliense

Ciência e Saúde

Arma genética impede que a malária se agrave

Estudo publicado por cientistas alemães e ganeses revela que crianças portadoras de um determinado gene relacionado à autodestruição dos glóbulos brancos têm 30% menos chance de desenvolver a forma mais severa da doença

Há exatamente um ano, Jerson Alvim, 66 anos, passava férias em Luanda, Angola. O período, que era para ser de descanso e diversão, acabou sendo preenchido por dores, espasmos, febre alta, muito suor e um mal-estar tão grande que o produtor musical mal conseguia sair da cama. Depois de dois dias, veio o diagnóstico: ele estava com malária, doença causada pelo protozoário do gênero Plasmodium e transmitida pelo mosquito Anopheles. Jerson teve um caso grave da doença, que atinge anualmente 500 milhões de pessoas ao redor do mundo, em especial na América Latina, no Sudeste Asiático e na África subsaariana. Ligada às populações mais pobres, permanece sem formas eficazes de controle e prevenção.

Uma pesquisa divulgada na última edição do periódico especializado Ploas Genetics, no entanto, trouxe uma nova esperança para pessoas como Jerson, que desenvolveram casos graves do mal. O estudo, feito com cerca de 6 mil crianças de Gana, na África, descobriu que um gene relacionado ao processo de autodestruição dos glóbulos brancos, responsáveis pela defesa das células, ajuda a diminuir a incidência da forma mais intensa do mal ; que pode, inclusive, levar à morte.

Feito por cientistas do Instituto de Medicina Tropical Bernhard Nocht, de Hamburgo, na Alemanha, e da Kumasi University, de Gana, o estudo mostrou que crianças que possuem a variação genética, ao contrair o protozoário, têm 30% menos chances de a doença evoluir para a forma severa. ;Em nosso estudo, verificamos que as crianças com a variante têm uma maior expressão do receptor CD95 na superfície das células brancas do sangue. O CD95 é o responsável justamente pelo suicídio celular;, contou ao Correio a pesquisadora alemã Kathrin Schuldt, uma das responsáveis pelo estudo.

A especialista explica que, embora tenham menos chances de desenvolver malária grave, os portadores da variante genética apresentam a mesma possibilidade de adquirir a forma branda do mal. ;Os portadores da variante não estão completamente protegidos contra a malária, mas desenvolvem sintomas menos graves. Embora continuem a ser infectados, são menos propensos a apresentar complicações com risco de morte;, explica a cientista alemã. Embora a pesquisa tenha sido feita com meninos e meninas ; as maiores vítimas da malária grave ;, o mesmo se aplica a adultos.

Variáveis
Três fatores contribuem para o desenvolvimento da forma grave da doença: o grau de infestação pelo Plasmodium (ou seja, quanto mais agentes infecciosos, mais grave é caso); o tipo de infestação (uma variante do protozoário conhecida como falcípara contribui para o surgimento de casos letais); e a resposta imune do organismo. ;Quando o protozoário entra no sangue, os glóbulos brancos geram uma resposta imune a eles. Quando essa resposta é muito intensa, os sintomas, como febre, dores e sudorese, são mais fortes;, explica Cláudio Ribeiro, do Laboratório de Pesquisa em Malária da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro.

Assim, quando as células brancas estão programadas para terem ciclos de autodestruição, a resposta imune dada à malária é mais baixa. ;É como se, de tempos em tempos, o paciente tivesse uma queda de imunidade. Isso impede que a sintomatologia da doença seja muito intensa. A inflamação é menos grave;, explica Ribeiro. Com menos febre, menos espasmos e menos dores, o doente tem mais forças para se recuperar da infecção. ;O gene age especificamente nos mediadores inflamatórios, que são substâncias derivadas dos agentes infeciosos e que ativam o gatilho da resposta imune;, completa o especialista carioca.

Os pesquisadores alemães e ganeses têm dois desafios antes que o resultado da pesquisa se traduza em benefícios diretos para o paciente. O primeiro deles é descobrir se a variante genética que atua no mecanismo de morte programada dos glóbulos brancos está presente em outras populações além da de Gana. Como há séculos esses povos convivem com a doença, eles podem ter desenvolvido uma resposta diferente da normal ao problema. ;Estamos planejando para descobrir se esse efeito protetor está presente em outras populações que vivem em regiões endêmicas de malária;, explica Kathrin.

Quando essa fase for concluída, os pesquisadores devem chegar à última etapa do processo: o desenvolvimento de medicamentos que promovam o suicídio celular. ;Como esse é um estudo, abordando os mecanismos moleculares durante uma infecção pelo falcíparo, ainda há um longo caminho para encontrar um alvo novo da droga ou uma intervenção contra a malária;, conta a pesquisadora. ;Mais estudos baseados em nosso resultado, entretanto, podem contribuir para controlar a malária;, completa Kathrin.