Jornal Correio Braziliense

Ciência e Saúde

Cientistas lutam para decifrar como funcionam os 'arquivos' cerebrais

Quem nunca se pegou preocupado com um lapso ou uma falha na memória? É a chave do carro esquecida em algum lugar, o nome de um vizinho de longa data que, de repente, some da mente, o compromisso inadiável que passa batido.

Os esquecimentos ; eventuais ou constantes ; estão, segundo especialistas, entre as principais queixas dos pacientes que procuram os consultórios neurológicos. A preocupação tem sentido. Afinal, todas as informações utilizadas no dia a dia estão relacionadas à memória. O tempo inteiro, novos dados precisam entrar para a rede de neurônios e caminhos envolvida nesse processo. No cérebro, eles permanecem por milésimos de segundo ou por décadas. Além disso, para dar sentido aos acontecimentos relacionados à vida e à trajetória de cada um, conhecimentos são recuperados constantemente dos ;arquivos; cerebrais, que, de acordo com especialistas, não têm a ver com as pastas virtuais nas quais se guardam dados nos computadores.

O trânsito de informações, que sempre intrigou a ciência, não cessa nem durante o sono e, aos poucos, a memória vem sendo desvendada por pesquisadores do mundo inteiro. Nos Estados Unidos, um estudo recém-divulgado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences sugere que o motivo pelo qual pessoas mais velhas têm mais dificuldade em alternar tarefas está nas redes neurais. Um de seus autores, o docente da Universidade da Califórnia em São Francisco Adam Gazzaley, explica que lidar com muitas atividades envolve a memória de curta duração, justamente aquela com capacidade de armazenar informações por menor período de tempo. ;Detectamos que a dificuldade em conduzir mais de uma tarefa ao mesmo tempo está no tempo de alternar entre uma atividade e outra.

O problema fundamental, no entanto, não é a tarefa em si ou as interrupções, mas as distrações;, sustenta o americano.

Para o neurologista e professor titular do Departamento de Neurologia e Neuropsicologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Benito Damasceno, a pesquisa dá pistas de que a capacidade do cérebro em ignorar as informações irrelevantes cai com a idade e que isso também gera efeitos na memória de trabalho. O professor da Unicamp explica que existem vários tipos de memória, cada qual disposta em uma região do cérebro. Todas se interligam. O cérebro é uma grande rede. ;A memória é reconstrução. Ela não é estática, depende da atenção. O foco é uma função mental extremamente necessária para ela. É importante para ativar o que é relevante em determinada tarefa ou descartar o que não é;, diz Damasceno. ;O processo é ininterrupto. Precisamos, inclusive, do sono para esquecer e dar espaço ao que será vivenciado. Esquecer é tão importante quanto lembrar.;

Muito a pesquisar
De acordo com o neurocientista da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) Iván Izquierdo, as falhas de memória ocorrem quando as sinapses ; conexões entre os neurônios ; encarregadas de evocar qualquer uma das várias memórias estão alteradas, inibidas ou reduzidas. Tal redução pode ser acelerada, entre outros fatores, por males degenerativos, acidentes vasculares cerebrais, estimulação excessiva por drogas ou álcool e traumatismos cranianos. Um dos maiores estudiosos do mundo na área, Izquierdo sustenta que os mistérios estão sendo esclarecidos. ;Um grande filósofo italiano disse que somos aquilo que nos lembramos. A definição não poderia ser mais perfeita. A memória reflete nossa posição no mundo;, avalia. ;As descobertas mais relevantes se referem ao mecanismo bioquímico envolvido nessa rede neural que caracteriza a memória. Já entendemos um pouco, mas ainda falta bastante.;

A velhice, segundo o especialista, é acompanhada de um enfraquecimento geral nos diversos tipos de memória, seja ela declarativa ; capacidade de verbalizar um fato ;, imediata ou de procedimentos. ;A idade influencia, mas quanto mais conteúdo emocional, mas fácil de evocá-las. As emoções também podem inibir a memória. É comum que o chamado popularmente de branco seja decorrente do estresse, seja ele físico ou emocional;, diz. ;De qualquer forma, a perda de memória no decorrer do tempo é benéfica. Ela desentope o cérebro para que tenhamos espaço para novas aquisições.;

Quando os lapsos ou as falhas não são decorrentes de doenças degenerativas ou que afetam as estruturas cerebrais, podem ser atribuídas ao desequilíbrio psíquico, à insônia, a deficiência de vitaminas ou hormônios e até ao sedentarismo. A administradora Mirna Jacob, 48 anos, fica impressionada com os famosos ;brancos; que têm ao longo do dia, mas confessa ser uma pessoa agitada, centralizadora e estressada. ;Quero resolver tudo, dos afazeres diários de casa e do trabalho aos problemas dos meus pais, que moram em São Paulo. Para não esquecer nada, anoto tudo em pequenos lembretes;, diz. Mirna também admite dormir pouco. ;Vou para cama tarde e acordo cedo. Durante a noite, levanto umas quatro vezes. Já passei por situações inusitadas no trabalho e em casa. É comum esquecer ou trocar o nome das minhas filhas.;

Cansaço e falhas

Já a aposentada Clara*, 79 anos, não tem muitos problemas. Cuidadosa em relação à saúde e ao bem-estar, ela resolveu fazer um checape neurológico para averiguar como anda sua memória. Ativa, Clara mora sozinha, é sindica de três prédios, faz exercícios todos os dias, viaja constantemente com um grupo de amigas e faz questão de dormir por 40 minutos diariamente depois do almoço. ;Ainda assim, a idade tem mudado algumas coisas. Não lembro números de telefone de jeito nenhum. Quando assisto a um programa ou novela, no outro dia não recordo de tudo com a mesma desenvoltura do passado;, lamenta. ;Os testes de memória feitos no neurologista, de qualquer forma, não apontaram problemas preocupantes;, diz.

O neurologista Ricardo Teixeira, do Instituto do Cérebro de Brasília, pondera que, além do Alzheimer e da doença de Parkinson, os males vasculares cerebrais podem causar danos sérios à memória. ;É comum que os pacientes, jovens ou idosos, nos procurem para tentar prevenir a degeneração dos neurônios. Para postergar as falhas de memória é preciso dormir bem, tentar ter uma vida equilibrada e não deixar de tratar problemas que causem distúrbios para o dia a dia. A vida está muito agitada. A rotina nos priva de fazer atividades benéficas ao corpo e à mente;, considera.

O médico lembra que a falta de vitamina D também causa deficit cognitivo, assim como a vitamina B12. Segundo ele, os problemas de lapsos na juventude estão mais relacionados à falta de atenção e, em termos hierárquicos, ela é até mais importante que a memória. ;Se não prestamos atenção, vamos nos lembrar do quê? É importante investigar a falta dela. Nos idosos acima de 80 anos, falhas são realmente esperadas, mesmo sem doenças relacionadas. Basta lembrar que, acima da oitava década de vida, uma em cada quatro pessoas tem demência. É natural, a máquina humana cansa e falha. O que se pode fazer é postergar o desgaste com atividades intelectuais, físicas e lazer;, recomenda.