Eram 12h56 de uma segunda-feira comum. O céu da Flórida estava aberto na discreta tarde de primavera do Hemisfério Norte quando o cronômetro regressivo finalmente chegou ao zero e o agente da Nasa, a agência espacial dos EUA, disse pelo alto-falante: ;Bye; (tchau). Como resposta, houve um estrondo e muita fumaça.
Partia rumo ao espaço um gigante de 2 mil toneladas chamado ;Esforço; ou Endeavour, como preferem os norte-americanos. Depois desta missão de 16 dias na Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês), o ônibus espacial que serviu à ciência por quase 20 anos se tornará peça de museu. Na viagem de despedida, carrega uma das cargas mais especiais que já transportou: o Espectrômetro Alfa Magnético-2 (AMS-2, na sigla em inglês). O equipamento de nome complicado vai ajudar o homem a entender algo igualmente complexo: a matéria escura, que compõe cerca 25% do Universo, mas permanece como um mistério para os humanos.
Até ontem, a missão final do Endeavour passou por diversos reveses. Problemas no lançamento de seu antecessor, o Discovery, fizeram a Nasa adiar seu lançamento. Mesmo assim, na data prevista, 29 de abril, um problema no sistema elétrico da espaçonave fez a missão ser adiada inicialmente por 48 horas e, depois, por mais uma semana. O comandante da jornada é o experiente membro da Marinha Mark Kelly. Além dele, outros quatro americanos e um italiano ; que representa a Agência Espacial Europeia (ESA), parceira da Nasa do projeto ; compõem a equipe da missão STS-134.
O voo é o penúltimo de um ônibus espacial. Os altos custos das naves reutilizáveis produzidas pelos Estados Unidos entre 1980 e 1991 e a sua baixa utilização ; esperava-se que os veículos conseguissem fazer centenas de idas ao espaço por ano, no entanto esse número não passou de 12 ;, além da crise econômica mundial, fizeram o governo americano encerrar de vez o caro programa. O Discovery foi aposentado no início do ano, e o Atlantis deve fazer sua última missão em julho.
O Challenger explodiu depois do lançamento em 1986, e o Columbia se desintegrou durante a reentrada atmosférica em 2003. Completa a lista de astronaves do gênero o Enterprise, utilizado apenas para testes. Em breve, portanto, os Estados Unidos dependerão das Soyuz, as naves descartáveis da Rússia, para levar seus astronautas ao cosmo. Será a primeira vez que isso ocorrerá desde que o homem chegou à Lua a bordo da Apollo 11, em 1969.
O maior interesse para a ciência neste último voo do Endeavour, no entanto, está mesmo no AMS-2, que os astronautas acoplarão à Estação Espacial. O equipamento é uma espécie de ;leitor; de poeira espacial. Seu objetivo é analisar as partículas resultantes da interação entre a matéria escura e a matéria visível. ;Até hoje, nós possuíamos muito poucos estudos práticos sobre matéria escura.
Agora, poderemos, pela primeira vez, analisar partículas geradas pela interação desse tipo de matéria;, diz ao Correio pesquisador português Fernando Barão, que faz parte da equipe de especialistas que colabora com a Nasa para interpretar os dados que serão enviados pelo equipamento.
Equipamento potente
Além de Barão, centenas de pesquisadores de 14 países fazem parte do consócio que tentará ler as pistas da composição da matéria escura, que representa um quarto de tudo que existe no Universo. ;Para se ter uma ideia da complexidade do espectrômetro, ele é 4 mil vezes mais potente do que os equipamentos que temos hoje para estudar a poeira espacial;, afirma o cientista português. Quatro dias depois que for instalado, o equipamento deve enviar as primeiras informações para as torres de controle da Nasa, do Centro Marshall de Voo Espacial, ambos nos EUA, e do Centro Espacial Europeu, na França. ;Assim, 24 horas por dia, pesquisadores analisarão os dados que forem enviados;, completa o pesquisador, que está animado com os resultados que podem ser obtidos.
A empolgação é justificável. Enquanto a matéria visível, formadora da Terra, galáxias e tudo que podemos ver, representa apenas 5% do Universo, cerca de 95% de tudo que existe são formados pela matéria (25%) e energia (70%) escuras. ;Não sabemos do que a matéria escura é feita, mas sabemos que ela influencia o movimento das galáxias e está ligada à formação de matéria;, explica o professor do Instituto de Física da Universidade de Brasília (UnB) José Leonardo Ferreira.
Até agora, só se tinha podido estudar a matéria escura por meio de observações indiretas, já que se trata de algo invisível. Segundo o pesquisador da UnB, os telescópios mais potentes, como o Hubble, registram em suas imagens uma alteração na rotação das galáxias à medida que elas se distanciam da Terra.
Foi a partir da medição dessa distorção, causada pela interferência da matéria escura, que os pesquisadores calcularam a quantidade desse tipo de matéria existente no Universo. ;Com a leitura das partículas resultantes da interação dos dois tipos de matéria, clara e escura, espera-se aprender mais sobre questões importantes sobre o movimento e a origem das galáxias;, completa Ferreira.
Quarta viagem
O astronauta Mark Kelly, 47 anos, já participou de outras três missões. Em 2006 e 2008, a bordo do Discovery, e em 2001 na própria Endeavour. Kelly quase ficou de for a da missão final do Endeavour. Ele se afastou da Nasa no início de janeiro, depois que sua mulher, a deputada Gabrielle Giffords, levou um tiro na cabeça durante um atentado em Tucson, no Arizona. Ainda em recuperação, a congressista acompanhou pessoalmente o lançamento do ônibus espacial do centro de lançamento de Cabo Canaveral, na Flórida. A presença do presidente Barack Obama era esperada em 29 de abril, mas, devido ao adiamento, ele não pôde presenciar o lançamento de ontem.