Jornal Correio Braziliense

Ciência e Saúde

Grupo da Universidade da Pensilvânia consegue 'dissecar' a esquizofrenia


Descrita há 100 anos pelo suíço Eugen Bleuler, a esquizofrenia ainda é um desafio para a medicina, que compreende muito pouco sobre esse transtorno ; o mal afeta 1% da população mundial. Um dos mistérios por trás do problema é seu mecanismo biológico. A ciência tem certeza de que há um forte componente genético ; cerca de 85% dos casos estão relacionados à hereditariedade ;, mas pouco se sabia, até agora, sobre a biologia das células cerebrais afetadas. Até que um grupo internacional de pesquisadores conseguiu recriar neurônios in vitro, construídos a partir de células epiteliais retiradas de quatro portadores do transtorno mental. O estudo, publicado na edição de ontem da revista Nature, poderá resultar no desenvolvimento de tratamentos mais eficazes.

As tentativas de desvendar a estrutura das células dos pacientes sempre tiveram como base tecidos retirados do cérebro de cadáveres. Essa é a primeira vez que se consegue obter estruturas vivas, o que traz imensas vantagens à pesquisa. ;O estudo da expressão gênica de neurônios derivados de células-tronco permite fazer comparações mais precisas entre a ação de diversos tratamentos antipsicóticos, pois temos em mãos células cerebrais vivas, idênticas às dos portadores do distúrbio. Isso elimina muitas variáveis que podem confundir a análise das células quando retiradas post mortem, como o histórico de medicamentos, abuso de drogas e álcool e mesmo a causa da morte;, disse ao Correio um dos autores do artigo, Gong Chen, do Departmento de Biologia da Universidade Estadual da Pensilvânia, nos Estados Unidos.

;Essa é a primeira vez que uma doença mental complexa foi estudada em células humanas vivas;, comemora o principal autor do artigo, Fred Gage, professor do Laboratório de Genética do Instituto Salk de Estudos Biológicos. ;O modelo de pesquisa que desenvolvemos não só nos oferece a oportunidade de olhar para os neurônios vivos, desenvolvidos a partir das células dos próprios pacientes com esquizofrenia, e compará-las às de indivíduos saudáveis, mas também uma forma de conseguir entender melhor o mecanismo da doença, assim como as melhores drogas para revertê-la;, comentou, em entrevista ao Correio.

Definida como uma combinação de ilusões paranoicas, alucinações sensoriais e diminuição das funções cognitivas, a esquizofrenia é fruto da combinação genética e de fatores ambientais. Gage diz que, devido à variedade e à complexidade dos sintomas (veja infografia), ela é uma das doenças mentais que mais desafiam os cientistas. ;Sem um entendimento das causas e da fisiopatologia do distúrbio, ficamos sem ferramentas para desenvolver tratamentos efetivos ou tomar medidas preventivas.;

Reprogramação
Para tentar vencer essas limitações, como a falta de acesso a neurônios humanos e a dificuldade de separar os fatores genéticos daqueles ambientais, a pesquisadora e aluna de pós-doutorado da Universidade Estadual da Pensilvânia Kristen Brennand resolveu reprogramar células da pele de quatro pacientes com esquizofrenia que tinham um histórico familiar do distúrbio mental. Ela, então, diferenciou essas células em neurônios. A técnica consiste na retirada de estruturas especializadas ; no caso da pesquisa, as células epiteliais ; e na indução a um estado semelhante ao das células-tronco embrionárias, quando são capazes de se transformar em qualquer tecido.

Descoberta em 2006, a metodologia das células iPS (do inglês induced pluripotent stem-cells) é uma alternativa às barreiras éticas da utilização de estruturas embrionárias. O índice de sucesso nas culturas in vitro, contudo, é baixo, e pouco se sabe sobre a segurança das células. No caso da pesquisa de Brennand, a possibilidade de que no futuro essas estruturas se multiplicassem, dando origens a tumores, não foi um entrave, já que essas células não serão implantadas no organismo, mas servem apenas para o estudo em laboratório.

Para reprogramar as células, é preciso expô-las a fatores específicos, que fazem com que elas, espontaneamente, modifiquem sua linha de ação. Geralmente, os cientistas usam vírus para inserir nas estruturas o material genético necessário para que se especializem, já esses organismos microscópios são mestres na arte de se infiltrar nas células. A pesquisa de Brennand utilizou vírus da raiva modificados, desenvolvidos pelos professores Edward Callaway e John Young, do Instituto Salk. ;A transmissão da raiva acontece via sinapses (comunicação entre os neurônios), por isso eles escolheram esse vírus;, explicou a aluna de pós-doutorado ao Correio.

O que os cientistas observaram é que as sinapses eram diferentes no caso dos neurônios criados a partir da célula de pacientes com esquizofrenia. A frequência das conexões entre eles eram bem menores, assim como o tamanho dos dendritos, que são prolongamentos dos neurônios, especializados na recepção de estímulos nervosos. Foram identificados quase 600 genes cuja atividade estava desregulada nesses neurônios ; 25% dos genes já haviam sido previamente associados à doença.

A eficácia dos tratamentos antipsicóticos foi testada por Brennand, que administrou nos neurônios as drogas mais frequentemente prescritas, durante três semanas. Apenas uma das cinco substâncias age nos receptores de dopamina, aumentando a habilidade dos neurônios de alcançar outras células e se conectar aos vizinhos. A droga também afetou a atividade de centenas de genes. ;Pela primeira vez, temos um modelo que nos permite estudar o efeito dos antipsicóticos nos neurônios. Por muitos anos, a doença mental foi considerada um problema social ou ambiental, e muitas pessoas achavam que, se os portadores dos transtornos simplesmente trabalhassem sobre seus problemas, eles poderiam vencê-los. O que estamos provando aqui é que existem disfunções biológicas reais nos neurônios, que independem de qualquer fator;, escreveram os autores do artigo.

Cisão da mente
O psiquiatra Eugen Bleuler cunhou o termo esquizofrenia do grego skizo (cisão) e fhrenos (mente). Antes de Bleuler, já havia registros sobre o distúrbio, mas os médicos o chamavam de demência precoce, porque, erroneamente, achavam que só acometia os mais jovens. Embora não tenha sido a intenção do cientista suíço, a esquizofrenia acabou, com o tempo, ganhando um significado pejorativo.