A prancha de madeira de 53cm de largura por 77cm de altura que repousa em uma nobre parede do Museu do Louvre, em Paris, guarda muito mais do que o rosto de uma mulher, que, misteriosamente sorri para os milhões de visitantes que, como peregrinos, viajam de todo o mundo a fim de conhecê-la. A obra Mona Lisa, pintada pelo mestre italiano Leonardo da Vinci durante o Renascimento, guarda mistérios e controvérsias que, durante séculos, ocuparam a mente de alguns dos mais importantes especialistas em arte do mundo. Agora, pesquisadores do Conselho Nacional de Valorização do Patrimônio Histórico Cultural e Ambiental da Itália decidiram empreender uma verdadeira cruzada para descobrir como, de fato, era a aparência da mulher que posou para da Vinci criar o rosto mais famoso do mundo.
Depois de anos de pesquisa histórica sobre a vida de Lisa Gherardini, a mais provável modelo do quadro, os pesquisadores acreditam finalmente ter encontrado os restos mortais da italiana. Os próximos passos do estudo são recriar a face da mulher enterrada em um convento italiano e mostrar ao mundo a face da musa ; ou descobrir que o gênio renascentista pregou mais uma peça na humanidade.
Detalhes da identidade e do destino de Lisa permaneceram ocultos durante séculos. Tudo que se sabia sobre a moça era que foi casada com Francesco Del Giocondo, um rico mercador de seda. Alguns documentos sugeriam que ela poderia ter ingressado no convento de Santa Úrsula, a poucos metros de sua casa, em Florença, na Itália, logo após a morte de seu marido. ;No entanto, faltava uma prova documental que confirmasse essa informação e desse a localização do corpo;, explica Silvano Vicenti, principal autor do estudo e diretor do conselho cultural italiano, em entrevista ao Correio.
Essa prova surgiu em 2007, apesar de os pesquisadores só a terem revelado nesta semana. Trata-se de um livro no qual as freiras registravam os acontecimentos no convento. Uma pequena frase, em meio a diversas anotações, dá a preciosa informação: ;Lisa de Francesco Del Giocondo morreu em 15 de julho de 1542 e foi sepultada em Santa Úrsula;, afirma o documento, que também indica o local exato onde o corpo foi enterrado. Exames de raios X e um GPS confirmaram a existência de um crânio feminino no local.
No próximo dia 27, começará a exumação do corpo. A ideia dos pesquisadores é fazer um exame de DNA no crânio encontrado com o dos dois filhos de Lisa, sepultados em uma capela no centro histórico de Florença. Comprovada a identidade de Lisa, a pesquisa deve partir para a segunda e mais difícil etapa: determinar como era o rosto da italiana e compará-lo com o quadro, para enfim elucidar o mistério de cinco séculos.
Para isso, será usada uma complexa técnica de computação gráfica, semelhante à empregada nos restos mortais de Tutancâmon e que determinou a aparência aproximada do rosto do governante do Antigo Egito, morto no século 14 a.C. ;Esse estudo deverá ser feito por três instituições diferentes: a Universidade de Pisa e por centros da França e do Canadá;, conta Vicenti. Os exames de DNA e a reconstrução da face devem demorar cerca de quatro meses.
Dois modelos
A expectativa de Vicenti é que o resultado confirme a teoria, elaborada por ele mesmo, de que o rosto expresso em La Gioconda ; como o quadro é chamado pelos italianos ; é, na verdade, uma fusão da face de Lisa com a do servo e aluno de da Vinci conhecido como Salai, modelo do pintor em outros quadros, entre eles São João Batista, sua última obra. Essa teoria ganhou força quando, em dezembro passado, imagens em altíssima resolução do quadro mostraram símbolos minúsculos ocultos na obra. ;Esse quadro é mais do que uma imagem bonita, trata-se de um testamento pictórico de da Vinci. Sua interpretação me convenceu de que, com nossa atual pesquisa, vamos ter uma resposta a um dos mistérios da Mona Lisa, embora outros devam continuar sem solução;, completa.
Mesmo a comprovação de que Lisa Gherardini tenha mesmo servido de modelo para da Vinci, a história dessa mulher continuará cercada de mistérios. Vários fatos do quebra-cabeça montado pelos pesquisadores não se encaixam com o estilo de vida comum da sociedade renascentista. ;Em primeiro lugar, viver em um convento definitivamente não era uma possibilidade para muita gente. Além de ser rica, a pessoa precisava ser de uma família nobre;, afirma o professor de história medieval da Universidade de Brasília (UnB) Celso Silva Fonseca.
Se o ingresso em conventos não era comum, mais estranho ainda é esse ter sido o destino de uma mulher viúva. ;A tradição da época era casar-se logo após a viuvez;, conta o historiador. ;Se essa é mesmo a história de Lisa, acredito que não se trata de uma biografia convencional para a época;, completa.
Outro fato que chama a atenção de Fonseca são os registros da morte de Lisa e de seus dois filhos, pois a escrita era privilégio quase exclusivo do clero no período. ;Mesmo que tenham sidos sepultados em mosteiros e conventos, não era de se esperar que houvesse registos. Nem todo estabelecimento religioso possuía pessoas letradas e, nos que as tinham, elas em geral se ocupavam de registrar outros assuntos, como as cópias de livros e da Bíblia; não a morte de pessoas;, explica.