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Ciência e Saúde

Homem moderno pode ter saído da África 65 mil anos mais cedo do imaginado

Expulsos do paraíso, Adão e Eva tomaram seus rumos e, assim, o Homo sapiens colonizou o globo. Mesmo em sentido figurado, o episódio bíblico ilustra a primeira migração do homem moderno, fundamental para a evolução e a prevalência da espécie. Do Jardim do Éden ; no caso, a África ;, os primeiros ancestrais teriam viajado diretamente para a Península Arábica, região onde o continente se une à Ásia, há 125 mil anos.

A nova teoria, apresentada por um consórcio internacional de cientistas na edição de hoje da revista Science, coloca em xeque a ideia que se tinha até agora de que o Homo sapiens só saiu do berço da humanidade há 60 mil anos, tendo o Vale do Nilo como rota. Segundo o novo estudo, a espécie teria iniciado o processo migratório muito mais cedo, e não só em embarcações, mas a pé. Além disso, ao contrário do que se acredita, o movimento teria ocorrido de uma vez, em uma só leva migratória.

Os pesquisadores sustentam que, devido a mudanças climáticas ocorridas no fim da primeira era interglacial, o estreito Bab al-Mandab, que separa a Arábia da África, teria secado, facilitando a locomoção. Naquela época, o que hoje é uma região desértica e praticamente inóspita, era uma savana fértil, repleta de água e áreas cultiváveis. A geografia mundial era diferente, e a Ásia unia-se à Europa em uma massa de terra chamada Eursásia. Dos Emirados Árabes, onde teriam primeiramente desembarcado os primeiros nômades, o Homo sapiens chegou ao que hoje é o continente europeu.

A conclusão de que houve apenas um episódio migratório a partir da África há 125 mil anos foi fruto de achados no sítio arqueológico de Jebel Faya, nos Emirados Árabes. ;A primeira descoberta significativa ocorreu em 7 de março de 2006;, contou o arqueólogo alemão Hans-Peter Uerpmann, da Universidade de Tübingen, em uma teleconferência de imprensa da qual o Correio participou.

Ele contou que um grupo de pesquisadores escavava o local desde 2003, em busca de artefatos do período Paleolítico, entre 300 mil e 30 mil anos atrás. Usando uma técnica chamada datação por luminescência, que mede quanto tempo se passou desde que o objeto foi exposto pela última vez ao sol, a equipe descobriu que um conjunto de ferramentas, incluindo machados, facas e amoladores, tinham 125 mil anos de idade.

Para os cientistas, a descoberta significa que o homem evoluiu na África há cerca de 200 mil anos e, a partir daí, começou a colonizar o resto do mundo. ;Isso estimula uma nova avaliação sobre as formas pelas quais os homens modernos tornaram-se uma espécie global. Os donos dos artefatos encontrados em Jebel Faya eram anatomicamente iguais a você e a mim;, completou o principal autor do estudo, Simon Armitage, da Universidade de Londres. ;Entender a evolução humana requer não apenas a documentação do aparecimento de novas espécies, mas também entender onde nossos ancestrais estavam e para onde foram. Isso é crítico para a compreensão da ecologia humana, do nosso impacto no meio ambiente e das raízes sociais e culturais;, sustenta Armitage.

Diferentes técnicas
O arqueólogo Anthony Marks, da Universidade Metodista do Texas, também participou do estudo analisando as ferramentas encontradas. Ele diz que os objetos foram separados em três grupos: A, B e C. Os dois primeiros eram similares, mas muito diferentes do terceiro. Esse último era caracterizado pela tecnologia bifacial, diferentemente dos outros, de tecnologia plana. ;O kit C tinha 120 mil anos. Se olhássemos para a produção de artefatos daquela época na Península Arábica não encontraríamos nada parecido. Isso indica que as ferramentas do grupo C foram feitas por pessoas de fora. No leste da África, os homens usavam diversas técnicas, inclusive a dos artefatos do grupo C. Isso nos leva a concluir que as ferramentas A e B foram desenvolvidas localmente, por grupos isolados;, disse.

A conclusão de que o homem migrou antes do que se imaginava não saiu apenas da idade dos artefatos. Arqueólogo especialista em análises ambientais, Adrian Parker, da Universidade de Oxford, explicou como o clima favoreceu o que teria sido a primeira e única migração do homem moderno a partir da África. ;Para reconstruir o ambiente da época, comparei dados climáticos preservados na paisagem de antigos lagos e rios, nas dunas de areia e nas estalagmites das grutas. Mudanças nos níveis do Rio Vermelho também foram analisadas;, disse.

Ao colocar os dados juntos, explicou Parker, é possível deduzir quando o clima estava mais seco ou mais úmido. Quando o homem moderno surgiu na África, o globo passava pela Era do Gelo. Durante o período, o nível do mar baixou, à medida que a água congelou em grandes partes dos Hemisférios Norte e Sul. Ao mesmo tempo, a Península Arábica era um grande e inóspito deserto. O Homo sapiens isolou-se no atual continente africano, o único local que oferecia condições mais habitáveis.

Já na era interglacial, o planeta tornou-se mais seco e quente. Por causa das monções asiáticas, a chuva chegou à Arábia, transformando a paisagem em uma fértil savana, com extensos lagos e rios. O nível do Mar Vermelho baixou, permitindo que o homem saísse da África e passasse para o continente vizinho. Segundo Parker, os artefatos do grupo C encontrados em Jebel Faya eram típicos do período de transição da era glacial para a interglacial.

Desconfiança
As descobertas anunciadas pelos pesquisadores provocaram discussões no meio acadêmico. ;É algo realmente espetacular;, comentou o arqueólgo Michael Petraglia, da Universidade de Oxford. Ele já havia argumentado que o Homo sapiens deixou a África antes do que se imaginava. ;O novo estudo quebra o atual consenso;, argumentou, em entrevista à Science. Nem todos, porém, ficaram convencidos.

;Não estou completamente seguro disso. Não há evidências suficientes de que esses objetos foram feitos pelos homens modernos nem de que realmente vieram da África;, disse o arqueólogo Paul Mellars, da Universidade de Cambridge. Na coletiva de imprensa, Hans-Peter Uerpmann disse que é natural haver dúvidas e que, por isso, sua equipe viaja ainda este mês para continuar o trabalho na Arábia, em busca de outras provas de que os ancestrais humanos de fato passaram pelo caminho antes de ganhar o mundo.