Médica em tempo quase integral e pianista nas horas vagas, a cirurgiã pediátrica Tippi MacKenzie não sossegou até provar que uma técnica já desacreditada pelos colegas de profissão poderia ser viável. Há 10 anos, ela se dedica ao estudo do transplante de células-tronco em fetos, para tratar problemas congênitos. A estratégia, porém, vinha se mostrando falha, resultando em rejeição dos enxertos.
Os resultados não desencorajaram Tippi, que clinica durante a semana e passa os sábados dedilhando o instrumento musical. ;Quando se toca piano, você trabalha os detalhes de uma passagem difícil até a perfeição. É o mesmo com a ciência. Se há uma questão complicada em seu experimento, você não pode simplesmente desistir. Você enfrenta o problema;, ensina, em entrevista ao Correio.
Com essa determinação, ela liderou uma equipe do Hospital Infantil Benioff, vinculado à Universidade da Califórnia-San Francisco (UCSF), que realizou pesquisas extenuantes até conseguir um índice de sucesso encorajador nos transplantes. Embora o estudo ainda esteja na fase 1 ; realizado com modelos animais ;, foi a primeira vez que um feto com doença congênita recebeu células-tronco sanguíneas sem rejeitar o material.
Como se estivesse estudando Fantasia oriental, de Mily Balakirev, considerada a peça de piano mais difícil de ser executada, Tippi agarrou-se a todos os detalhes até entender o motivo pelo qual os transplantes, invariavelmente, terminavam em rejeição. Depois de uma década se debruçando sobre o tema, pode-se dizer que a médica alcançou o status de virtuose. O problema não está no feto, conforme a comunidade científica acreditava.
Quem mobiliza um exército de linfócitos, as células de defesa do organismo, para expelir o material estranho é, na verdade, a genitora. Decifrado o compasso mais difícil, a equipe de Tippi MacKenzie tirou de letra a partitura: o segredo está em utilizar células doadas pela própria mãe. ;A pesquisa ofereceu uma solução que vai no cerne da questão;, comemora Tippi. ;Pela primeira vez, temos uma estratégia viável para tratamento de doenças congênitas com células-tronco, antes do nascimento;, afirma.
O transplante de células-tronco ainda na fase fetal sempre foi considerado um tratamento promissor para doenças genéticas diagnosticadas até o primeiro trimestre da gravidez. A técnica consiste em retirar células saudáveis da medula óssea do doador e transplantá-las diretamente no feto, por meio de injeções guiadas pelo equipamento de ultrassom, que mostra o caminho a ser percorrido. A ideia é que, ao receber as estruturas saudáveis, o organismo do feto comece a produzir células normais.
Na teoria, como o sistema imunológico do feto ainda está em desenvolvimento, o risco de rejeição seria menor, e não haveria necessidade de a mãe ser medicada com imunossupressores, os remédios usados depois de um transplante, para evitar a expulsão do órgão. Ainda assim, na prática, as pesquisas realizadas sempre falharam. Com isso, os cientistas perderam o interesse no campo.
Inexplicável
O fato de os transplantes de células-tronco nos fetos não terem sido bem-sucedidos era um enigma, principalmente por causa do dogma largamente aceito de que, por ser imaturo, o sistema imunológico do feto pode se adaptar e tolerar substâncias exógenas, explicou, na apresentador do estudo, o coautor da pesquisa, Qizhi Tang, diretor do Laboratório de Pesquisas em Transplante da UCSF. ;O fato surpreendente de nossa pesquisa é que a culpa está no sistema imunológico da mãe.;
Para chegar a essa conclusão, foram realizados estudos com ratos. Primeiramente, os pesquisadores examinaram o conteúdo do sangue de um feto e descobriram que havia uma proporção grande de células da mãe no material. Mais de 10% do sangue fetal era proveniente da genitora ; um percentual significativamente maior do que o encontrado em qualquer outra parte do organismo do feto. ;Previamente, sabíamos que uma quantidade mínima de células viajam do corpo da mãe até o feto em desenvolvimento e isso é um mecanismo importante de tolerância em todas as gestações saudáveis;, conta Tippi. ;Porém, a proporção inesperadamente alta de células sanguíneas maternas no feto nos fez pensar que talvez era a resposta imunológica da mãe, mais do que a do feto, que colocava uma barreira ao transplante efetivo de células-tronco.;
A equipe, então, decidiu investigar a fundo essa hipótese. Eles coletaram células-tronco sanguíneas de uma outra linhagem de ratos, cujo plasma não havia sido misturado ao da mãe. Depois do transplante, os pesquisadores observaram um aumento de células T (os linfócitos) passando de mãe para feto. A consequência foi a rejeição ao transplante. Isso indica que, quando o animal, dentro do útero, recebe a doação de terceiros, o organismo materno fica pronto para o ataque e envia uma quantidade considerável das células de defesa para o sangue do feto.
A ideia foi finalmente comprovada quando os pesquisadores coletaram as células-tronco sanguíneas da medula da mãe e a transplantaram no feto. Aí, sim, o sucesso foi de quase 100%. ;Transplantar células-tronco retiradas da mãe faz sentido porque a genitora e seu feto em desenvolvimento são programados para se tolerar;, disse ao Correio o especialista em transplantes Qizhi Tang. O próximo passo é confirmar se o mesmo vale para humanos e também como exatamente as células T maternas provocam a rejeição do enxerto. ;Agora que sabemos que um feto pode se tornar tolerante a uma fonte de células-tronco exógenas, podemos realmente pensar grande e considerar a busca por outros tipos de células-tronco que possam ser usadas para tratar todo tipo de doença antes do nascimento: dos distúrbios neurológicos à distrofia muscular;, anima-se Tang.