Muitos são os apelos para o consumo. Euforia, menos inibição, relaxamento e até criatividade. Aliado a tudo isso, o mito de que a maconha não provoca danos mentais importantes leva a droga ao topo do consumo de substâncias ilícitas no país. Levantamentos oficiais apontam que quase 2% da população brasileira fumou maconha no último mês. Entre os universitários, a proporção é de aproximadamente 10%. A crença comum entre praticamente todos os usuários, porém, foi quebrada. Estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) aponta evidências científicas de que a chamada ;erva natural; provoca deficiências cerebrais relevantes, prejudicando a memória, o autocontrole, a capacidade de planejamento, de organização e a fluência verbal.
Para chegar a tais conclusões, a pesquisa, apresentada como tese de doutorado pelo Laboratório de Neurociências Clínicas da Unifesp, utilizou uma amostra de 173 usuários crônicos de maconha, que fumam de um a dois cigarros de maconha por dia, há pelo menos 10 anos. O contigente pesquisado, segundo Maria Alice Fontes, neuropsicóloga e autora do estudo, é o maior do mundo nessas condições. ;Conseguimos trabalhar uma amostra de pessoas que utilizam exclusivamente a maconha, o que é muito difícil. Geralmente, os grupos têm problemas relacionados ao uso de outras drogas e a doenças mentais associadas, como depressão, por exemplo;, destaca Maria Alice.
A amostra de 173 pessoas passou por testes neuropsicológicos que medem as funções ;executivas; do cérebro ; relacionadas ao maestro do cérebro, responsável pela capacidade de processar e organizar informações. Comparando os resultados com o grupo controle, formado por pesquisados com perfil parecido em termos de idade e escolaridade, ficou evidente o deficit dos usuários de maconha. No quesito memória, por exemplo, um dos testes deixa claro o abismo entre as duas populações estudadas. Ditou-se uma lista de 12 palavras para serem repetidas. O entrevistador repete apenas as que não foram lembradas. Enquanto o grupo de controle precisou, em média, de 34 repetições, os usuários necessitaram de 50.
;Para ter uma boa memória, você precisa ter um bom armazenamento. Ou seja, guardar a informação para depois recuperar. Verificamos que nos usuários de maconha a dificuldade começa já no início do processo, no armazenamento;, explica a neuropsicóloga Maria Alice. Um outro teste em que o grupo que utiliza a droga foi mal avaliado é o que mede a persistência em erros e a falta de capacidade de percebê-los. Determinadas combinações de cartas eram mantidas em sigilo, enquanto os entrevistados tentavam descobri-las, manuseando o baralho. O entrevistador limitava-se a dizer ;certo; ou ;errado;. As pessoas do grupo de controle acertaram quatro combinações, contra 2,5 descobertas pelos usuários de maconha.
Em outra bateria de testes, que avaliam funções como organização, planejamento e autocontrole, os participantes poderiam acumular 18 pontos, no máximo. A média dos que não usam maconha foi de 17,5 e dos que utilizam a droga, 16. ;Olhando assim, pode não parecer uma diferença tão expressiva. Mas se você avaliar que são 173 pessoas e que estamos falando da média, é algo grave. Até porque houve gente que tirou 14, 15. E ter pontuação abaixo de 17 já é considerado problemático;, afirma a especialista. Ela destaca que houve relação entre a quantidade consumida, a idade de início do uso e os prejuízos cerebrais. ;Quanto maior o consumo, piores os deficits. Principalmente se o usuário começou a fumar antes dos 15;, diz a especialista da Unifesp.
Banalização
Presidente da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e Outras Drogas (Abead), o psiquiatra Carlos Salgado enfatiza um ;empobrecimento geral cognitivo; como o principal impacto da maconha. ;Aí alguém sempre lembra que tem um sujeito brilhante, um ministro, um músico, que fuma há décadas. Sim, é verdade. Mas eles poderiam ser ainda mais brilhantes, porque estão atuando abaixo do seu potencial, abaixo do desempenho que poderiam ter;, ressalta Salgado. Entre as principais dificuldades dos usuários estão a memória, a qualidade de raciocínio para resolver questões complexas e a capacidade de responder a desafios psicomotores. ;Jogar tênis ou atuar em um trânsito complicado pode ficar mais complicado;, diz.
Características muito próprias da maconha, segundo Salgado, levam a droga a uma espécie de banalização por boa parte da sociedade. ;O impacto é mais sutil e lento que o de outras substâncias. Então, seu juízo de desempenho, de qualidade de vida demora mais a se formar;, diz o psiquiatra. Ele vai a outro extremo para fazer uma comparação. ;Enquanto o crack tem ação intensa, sensação imediata e induz a vontade de repetir a dose rapidamente, a maconha é o contrário. Ela diminui a ansiedade, a menos que haja um quadro de depressão, relaxa e dá fome. Talvez daí venha essa aceitação maior;, diz ele. Salgado acredita que, se legalizada a maconha, o consumo será maior. ;Estará mais disponível.;
OS DANOS SÃO IRREVERSÍVEIS?
Apesar dos resultados concretos, a pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) ainda não conseguiu responder a uma pergunta importante sobre o uso contínuo da maconha. Os danos cerebrais são permanentes ou, abandonando o hábito, é possível recuperar integralmente as funções prejudicadas? ;Essa é uma discussão bastante controversa. Há indícios na literatura de que é possível ter de volta as competências, desde que a pessoa fique anos sem utilizar a droga;, afirma a pesquisadora Maria Alice Fontes, autora do estudo.
O que a pesquisa apresentada na Unifesp constatou é que, mesmo depois de 14 dias de abstinência, os deficits ocasionados pelo uso crônico da maconha persistem. A conclusão segue o caminho de outros estudos, que já haviam detectado a permanência dos prejuízos cognitivos até sete dias depois do último cigarro fumado. ;Ainda precisamos conseguir analisar esse tema mais profundamente. A falta de usuários que se mantenham, por um longo tempo sem utilizar, depois de iniciados os estudos, dificulta trabalhos nesse sentido;, explica Maria Alice.