Jornal Correio Braziliense

Ciência e Saúde

Recomeço da vida sexual de infectados pelo HIV é, muitas vezes, traumático

Na véspera da comemoração do Dia Mundial da Prevenção da Aids, uma pesquisa realizada na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) mostra que retomar a vida sexual após o diagnóstico de HIV exige uma travessia penosa. Homens e mulheres, depois de se descobrirem soropositivos, precisam lidar com uma realidade muitas vezes incompreendida. Especialistas garantem: lidar com o preconceito é a principal barreira para uma vida sexual plena pós-HIV.

Segundo a pesquisa da USP, embora homens e mulheres enfrentem pioras na vida sexual depois do diagnóstico, os homens relataram sofrer mais problemas. Entre eles, 59% reclamaram da nova vida sexual, contra 41% entre elas. Para a pesquisadora, isso pode ser fruto de como a masculidade é apresentada pela sociedade. ;Questões como o número de parceiras, frequência do ato sexual ou supostamente estar sempre pronto para fazer sexo fazem com que as mudanças em relação à vida sexual sejam mais difíceis para os homens;, afirma a psicóloga Lígia Polistchuck, autora da pesquisa.

Os fatores que causam essa piora na sexualidade também são diferentes segundo o gênero do paciente. Para as mulheres, as causas estão na dificuldade de relação com os serviços de saúde. ;A maior parte das entrevistadas apontou problemas como não ter facilidade de falar com o ginecologista sobre a vida sexual, não ser atendida por profissionais de enfermagem e ter passado por desconforto ou dor por culpa do serviço de saúde;, explica a psicóloga. ;Ou seja, para as mulheres, a relação com o serviço de saúde tem um papel importante na construção de si como sujeito sexual após o diagnóstico de HIV.;

Já para os homens, a desestruturação da carreira, especialmente o desemprego, é o que mais pesa na piora da vida sexual. ;Nesse caso, parece que os significados associados ao masculino, tal como ser provedor, ser financeiramente independente, desempenham papel importante nessa construção de si como sujeito sexual após o diagnóstico;, avalia Lígia Polistchuck.

Retomada
O advogado Marcelo*, 39 anos, afirma que consegue levar uma vida sexual praticamente como a que tinha antes de descobrir que é soropositivo, há 12 anos. ;Hoje, vivo uma vida normal, sexualmente falando, óbvio que tomando precauções para manter minhas parceiras protegidas;, afirma. Nem sempre, porém, foi assim. ;Primeiro, passei por uma fase de apatia. Na época, não sentia interesse em retomar a minha vida como homem. Isso durou cerca de dois anos;, relata o advogado.

Depois da fase mais drástica, Marcelo foi retomando a vida normal, inclusive sexualmente. ;Quando você abre o exame e vê que deu positivo, é um choque, por mais que a gente saiba que Aids não é mais sinônimo de morte, como antigamente. Quando você se descobre como soropositivo, parece que o mundo para. Com o tempo, contudo, você percebe que a vida continua. O vírus deixa de ocupar o primeiro plano da sua vida e passa a ser uma coisa secundária;, conta.

Apesar da vontade de retomar a sexualidade, recuperar uma vida sexual satisfatória não foi fácil, exatamente como a pesquisa mostrou. ;Pelo menos no meu caso, acho que aconteceu um bloqueio. Sempre que começava a me envolver com alguma mulher, não conseguia levar a diante;, conta. Depois de algumas sessões no psicólogo com quem faz acompanhamento desde que foi diagnosticado, o advogado conseguiu ir aos poucos se soltando. ;Tive que aprender a ressignificar o HIV na minha vida e lentamente voltar a me ver como homem. Hoje, sinto que tenho sorte, pois consigo levar uma vida normal;, comemora.

Esforço
A estudante Vanessa*, 26 anos, sentiu o mesmo problema que o advogado Marcelo. ;Nem passava pela minha cabeça que pudesse ter o HIV. Embora não tenha desenvolvido a doença, é um choque. Achei que minha vida ia acabar, entrei em depressão;, relembra a jovem, diagnosticada há um ano e dois meses. ;Deixei o emprego e me afastei da maioria das pessoas. Passava o dia todo em casa. Não tinha ânimo para nada, muito menos para pensar em sexo;, conta.

A mudança na visão de Vanessa veio depois que ela começou a frequentar grupos de apoio para soropositivos. ;Depois de uns três meses, a minha mãe resolveu dar um basta. Me disse que era impossível eu continuar vivendo daquele jeito e conseguiu praticamente me obrigar a ir para um grupo de apoio;, conta. ;Lá, encontrei pessoas que tinham o mesmo problema que o meu e que lidavam com isso de maneira muito melhor. Agora estou tentando ir devagar. Cada um tem seu tempo. Hoje já lido melhor com o HIV, já voltei a trabalhar e sair à noite, mas sei que ainda preciso vencer mais esse bloqueio;, completa Vanessa.

Segundo a assistente social da Associação Brasileira de Apoio aos Portadores de Aids (Abrapa) Adriana Aparecida de Oliveira Vitorino, não é difícil encontrar entre os pacientes com HIV aqueles que relatam uma diminuição na frequência na vida sexual. ;Mesmo entre aqueles que têm parceiro fixo, há uma diminuição da libido;, conta. ;Isso em parte é reflexo de alguns medicamentos retrovirais, que acabam provocando uma diminuição da disposição sexual.;

Abandono
De acordo com o estudo da Universidade de São Paulo, 20% das mulheres relataram que não tiveram mais relações sexuais depois do diagnóstico. ;Várias vezes nos deparamos com pacientes que comentam que poderiam ;viver sem sexo;;, conta. ;Por insegurança, medo de prejudicar ainda mais sua saúde ou mesmo contaminar outras pessoas, elas acabam deixando esse aspecto da vida de lado;, completa a assistente social Adriana.

A psicóloga do Programa de DST/Aids da Secretaria de Saúde do Distrito Federal Aline Melo Soares acredita que a raiz do problema não está somente nos pacientes. ;A grande maioria dos que enfrentam esse problema relatam muito medo. Medo de contaminar o parceiro, mas, principalmente, medo de ser rejeitado;, conta. ;Não é incomum os pacientes manterem um relacionamento e, quando contam ao parceiro que são soropositivos, ele simplesmente desaparece;, lamenta a especialista.

Para ela, a questão é fruto do preconceito de quem é soronegativo. ;As pessoas ainda têm uma visão muito deturpada do que é o HIV. Por medo de serem infectadas, elas acabam se afastando, o que causa um problema ainda maior para o soropositivo;, comenta. ;Ele tem dificuldade de superar o choque inicial e retomar a vida afetiva e, finalmente, quando consegue, enfrenta a rejeição. Por isso, muitos pacientes que atendo simplesmente dizem que não pretendem retomar a vida sexual indefinidamente;, conclui Aline.

; Nomes fictícios a pedido dos entrevistados.