Uma das características mais fascinantes do cérebro é a chamada plasticidade ; a capacidade de reorganização para se adaptar a mudanças no organismo. Se um acidente, por exemplo, compromete a região responsável pelas funções motoras e de linguagem, outras partes do órgão assumem o papel e podem se sair tão bem quanto a original. Até agora, os cientistas acreditavam que isso não acontecia quando o dano atinge a porção cerebral relacionada à memória e ao aprendizado. Uma pesquisa da Universidade da Califórnia, entretanto, acabou de mostrar que existe um mecanismo capaz de compensar as perdas cognitivas em indivíduos que sofreram lesões no córtex pré-frontal.
A pesquisa, publicada na edição desta semana da revista especializada Cell, constatou que as porções preservadas do cérebro podem tomar para si a função de armazenar informações e ajudar na recuperação da função da memória. Os autores explicam que danos cerebrais podem ter consequências devastadoras, dependendo da localização e da severidade da lesão. Ferimentos que atingem o córtex pré-frontal geralmente resultam em deficits de memória e atenção. Apesar disso, muitas pessoas conseguem recuperar parte dessas funções ao longo do tempo, algo que ainda não havia sido bem entendido pelos pesquisadores.
;No nosso estudo, estávamos interessados em saber se a preservação da performance cognitiva em pacientes com danos no córtex pré-frontal em um hemisfério do cérebro é resultado de uma compensação da mesma região, mas localizada no outro lado do órgão;, disse ao Correio o principal autor do estudo, Bradley Voytek, da Universidade da Califórnia em Berkeley. Para tirar a dúvida, o neurocientista desenvolveu um protocolo de pesquisa que examina a atividade cerebral em pessoas que sofreram danos em apenas um dos hemisférios do cérebro.
Pacientes e indivíduos saudáveis participaram de testes de memória, com base em tarefas que requeriam atenção visual. Os estímulos eram apresentados para cada hemisfério de cada vez, permitindo aos pesquisadores desafiar tanto a área intacta do córtex pré-frontal quanto a danificada. Eles observaram aumentos passageiros na atividade cerebral relacionada à atenção e à memória na região preservada do cérebro, menos de um segundo depois que as imagens eram mostradas ao hemisfério lesionado.
;Isso mostra que as mudanças neurais observadas na recuperação do movimento depois de um dano cerebral também acontecem em relação às funções cognitivas e se aplicam a um modelo dinâmico de compensação da memória e da atenção por parte do hemisfério preservado;, diz Voytek. ;Isso demonstra que a recuperação do cérebro pode se automanifestar quando o indivíduo com lesão é desafiado, suportando a ideia de um modelo dinâmico e flexível da plasticidade neural;, conclui.
Espalhada
Para o neurocientista, os resultados sugerem que a memória não está armazenada em apenas um local, mas é distribuída em várias regiões do cérebro. Caso contrário, a função não poderia ser recuperada depois de uma lesão. ;Então, não se trata de apenas regiões específicas. A memória, na verdade, é suportada por uma rede de trabalho;, afirma Voytek.
Ele conta que, no experimento, foram colocados eletrodos no couro cabeludo de seis pacientes com lesão cerebral no córtex pré-frontal, mesmo procedimento usado com os outros seis voluntários do grupo de controle, ou seja, os saudáveis. Cada pessoa via uma série de imagens que testavam sua habilidade de lembrar dos objetos vistos depois de um pequeno espaço de tempo, a chamada memória de trabalho visual. É esse tipo de processo que permite aos indivíduos comparar dois objetos, mantendo a informação do primeiro na mente mesmo quando confrontado com o segundo. Exatamente como acontece com o joguinho infantil de memória, no qual é preciso lembrar onde está uma figura para fazer par com a outra.
;Nós apresentamos a cada participante um estímulo visual muito rápido e então mostramos para eles a imagem uma segunda vez, pouco tempo depois. Eles tinham de dizer se a imagem que viram foi a mesma exibida anteriormente;, conta Voytek. ;De alguma forma, construímos no cérebro uma representação do nosso mundo visual, de forma que, mesmo depois de ver um objeto, você fica com aquela ;imagem fantasma; na cabeça e pode compará-la a estímulos que você, de fato, está vendo naquele momento. Pessoas com danos no córtex pré-frontal não conseguem fazer isso bem;, diz.
Frações de segundo
O eletroencefalograma consegue medir a atividade cerebral em frações de segundo, apesar de não apontar as áreas que estão ativadas, como fazem os exames por imagem. Por outro lado, a ressonância magnética é incapaz de registrar quando o cérebro respondeu aos estímulos ; por isso, o eletro foi escolhido na pesquisa. Nos procedimentos, os neurocientistas descobriram que quando as imagens eram mostradas ao olho oposto ao hemisfério da lesão (a informação visualizada no olho direito é decodificada pelo hemisfério esquerdo e vice-versa), a parte danificada do córtex pré-frontal não respondia. Porém a área intacta do lado oposto respondia em menos de 600 milésimos de segundo.
;O eletroencefalograma, que é muito bom para examinar o tempo de atividade cerebral, mostrou que parte do cérebro compensa a parte danificada em pouquíssimo tempo;, explica Voytek. ;É uma compensação realmente rápida: menos de um segundo depois de o lado lesionado ser desafiado, a parte intacta se prontifica para entrar em ação.;
Em um segundo artigo de Voytek, publicado nesta semana no jornal da Academia Nacional de Ciências, dos Estados Unidos, o neurocientista examinou a memória de trabalho visual em pacientes com danos não apenas no córtex pré-frontal, mas também no gânglio basal. Essa estrutura consiste em um par de regiões localizadas diretamente abaixo do córtex cerebral, que estão envolvidas com o controle motor e o aprendizado e ficam danificadas em pacientes que sofrem de mal de Parkinson.
Conforme Voytek suspeitava, os pacientes com lesões no córtex pré-frontal tinham problemas quando a imagem era apresentada ao olho oposto ao hemisfério danificado. Aqueles com lesão no gânglio basal, porém, mostravam a mesma dificuldade não importando qual parte do campo visual estava a imagem mostrada a eles. ;O artigo que publiquei na Pnas mostrou que a lesão no gânglio basal causa um deficit mais global, enquanto que as lesões no córtex pré-frontal provocam mais um deficit de memória dentro de um hemisfério específico. Isso demonstra, novamente, que a memória é um fenômeno de rede, mais do que um fenômeno especificamente regional;, argumenta.
Palavra de especialista
O QUE NOS FAZ HUMANOS
;O dano cerebral tem um custo imenso para o indivíduo e a sociedade, mas o mecanismo neural por trás da recuperação das funções ainda é pobremente compreendido. Lesões no córtex pré-frontal resultam em deficits de memória e atenção com variáveis níveis de recuperação, observados em cada indivíduo. As informações da pesquisa de Bradley Voytek mostram que o processo cognitivo associado ao córtex pré-frontal é mais plástico do que se pensava e é propenso à recuperação. A cognição e a memória são as maiores expressões do comportamento humano. Não tem a ver com conseguir levantar ou abaixar a mão, ou conseguir ver ou não uma imagem. Essas duas coisas ; aprendizado e memória ; são o que nos faz humanos, e é por isso que pesquisas sobre elas são tão interessantes;.
Robert Knight, pesquisador de Neurologia Cognitiva da Universidade da Califórnia em Berkeley e diretor do Instituto de Neurologia Helen Wills