Jornal Correio Braziliense

Ciência e Saúde

'Muletas psicológicas' podem ser sinal de que algo vai mal

Da mesma forma como as pessoas que têm alguma dificuldade para andar necessitam de algum suporte, como uma bengala, ao deparar-se com uma situação difícil, o ser humano procura se firmar em algo ou alguém para conseguir superar a fase complicada. Assim como o bastão, essas ;muletas psicológicas; amparam quem não consegue seguir a vida com as próprias pernas.

[SAIBAMAIS]Por encontrar-se emocionalmente fragilizada, a pessoa tem dificuldades de tomar decisões por conta própria, criando uma relação de dependência com esse fator externo que a faz se sentir mais segura. De acordo com a psicoterapeuta Márcia Mossurunga, o artifício é, até certo ponto, válido, pois representa um conforto psicológico. No entanto, se a alternativa encontrada para superar um sentimento traz constrangimento social ou cria um julgamento negativo a respeito de si mesmo, é sinal de que algo está errado. E, aí, é bom procurar ajuda de um profissional. ;O grande diferencial entre uma crise e uma situação contínua é quando você percebe que o poder de decisão está relacionado com outro, um objeto ou uma instituição;, diz Márcia.

Laura*, 49 anos, é um exemplo de como a relação de dependência com um fator externo pode passar do limite saudável. Durante a maior parte de sua vida, ela viveu em função do ex-marido. ;Fui dona de casa durante 20 anos. Não tive experiência de vida. E meu marido era muito presente;, conta. Como vivia sempre dentro de casa, ela não tinha coragem de sair para a rua depois das 18h. ;Sempre tive medo de gente;, confessa. ;Se meu marido estivesse por perto, eu sentia que estava firme, mas não conseguia ficar sozinha nem por meia hora.;

Há 12 anos, ela sofreu uma isquemia cerebral e ficou com o lado esquerdo do corpo paralisado por cinco horas. A experiência, apesar de traumática, fez com que Laura repensasse sua atitude. ;Resolvi voltar a estudar e começar a trabalhar;, conta. Os passos rumo à autonomia, porém, não foram bem recebidos pelo companheiro, que não aceitava a nova Laura. O ciúme, ela acredita, acabou separando o casal. ;Ao ficar sozinha, deparei-me com outros medos. Descobri que nem fazer compras para as minhas filhas eu sabia;, lembra.

Ainda cheia de medos, mas sem o suporte do marido, Laura seguiu adiante. Conseguiu um emprego de cobradora. Para vencer seus temores e superar a separação, buscou ajuda na psicoterapia. As sessões a ajudam a se sentir cada vez mais confiante em si mesma. ;Eu não quero deixar de depender de um para depender de outro. Quero ser sozinha. Se eu tiver mais alguém na vida é porque gosto da companhia;, afirma. Nem a rotina desgastante a desanima ; há dias em que Laura chega do trabalho a 1h. ;Apesar de tudo pelo que passei, hoje me sinto vitoriosa;, orgulha-se.

O tratamento mais indicado para lidar com problemas como o de Laura é mesmo a psicoterapia, de acordo com a diretora do Conselho Regional de Psicologia da 1; Região, Ana Paula Pongelupe. ;Por meio dela, a pessoa consegue analisar de onde surgiram os problemas, a insegurança e a dificuldade de lidar com as frustrações;, explica.

O tratamento, no entanto, não é imediato. Desprender-se da muleta psicológica de uma hora para outra não é fácil, porque, assim como alguém com problemas de locomoção pode cair ao soltar sua muleta, a pessoa emocionalmente abalada pode sofrer muito se perder seu apoio de uma hora para outra.

;Para ela não se sentir desprovida de repente, é preciso um trabalho de fortalecimento de personalidade, um resgate natural da autoconfiança. Assim, é possível que ela deixe as dependências, seja do álcool, das drogas ou do companheiro, por exemplo;, descreve o psicólogo Alberto Maury. Segundo ele, como meio de identificar se a dependência está excessiva, é bom estar atento aos comentários dos amigos e familiares sobre os atos. Isso ajuda a pessoa a perceber se as atitudes estão avançando para um estágio fora do comum (veja quadro).

Transtorno
Em alguns casos, essa relação de dependência é tão grande que pode representar o que os especialistas chamam de transtornos obsessivos-compulsivos (TOC). Segundo explica Ana Paula Pongelupe, o TOC é a necessidade de contar com coisas externas para alcançar segurança interna. ;Elas transferem a necessidade de autoafirmação para outra coisa;, diz.

Autor do livro Vencendo o transtorno obsessivo-compulsivo, o psiquiatra Aristides Volpato esclarece que, enquanto a ;muleta; é um atraso de desenvolvimento psicológico, o TOC é um distúrbio psiquiátrico, caracterizado pela presença de obsessões e/ou compulsões. ;Obsessões são pensamentos, imagens e ideias que invadem a mente contra a vontade. Então, para aliviar o medo ou a aflição, a pessoa se vê obrigada a tomar certas atitudes, que são as compulsões;, afirma. Ele pontua as manifestações mais comuns: lavar as mãos o todo tempo, conferir portas e janelas para se sentir seguro, juntar objetos que poderiam ser descartados e ter pensamentos repugnantes, agressivos e impróprios.

Cordioli esclarece que o tratamento para a doença, além de terapia cognitivo comportamental, onde os pacientes entram em contato com os medos para, aos poucos, conseguir encará-los, há medicamentos inibidores da recaptação da serotonina, neurotransmissor que reduz os sintomas dos transtornos.

Uma das vítimas do TOC foi a auxiliar de escritório Adriana Viaro, 30 anos. Quando ainda era adolescente, aos 13, ela começou a imaginar a morte de pessoas próximas. Para evitar que seus temores virassem realidade, ela desenvolveu rituais de proteção. ;Tenho um filho de 4 anos e uma filha de 9, então, em tudo que faço, conto os números para que não pare nas idades deles. Por exemplo, abro e fecho as gavetas no mínimo cinco ou 10 vezes;, explica. Nas crises de medo, Adriana chegou a ficar parada no mesmo lugar, por quase 10 minutos, balançando para frente e para trás.

Há um ano, Adriana procurou tratamento. Além de tomar medicamentos, ela faz terapia uma vez por semana. ;Eu não sabia o que era a doença. Só depois de ver na televisão tomei conhecimento e tive coragem de procurar ajuda;, conta. Ela confessa que tem pensamentos tão horríveis que só tem coragem de dividir com o médico.

Para a auxiliar de escritório, é muito bom ter alguém que a escute sem julgá-la. ;Com o tratamento, muita coisa melhorou. Eu não conseguia sair pela porta de serviço do apartamento, também tinha sempre que verificar atrás das portas. Hoje, já consigo viver bem mais tranquila e segura;, comemora. Para ela, o remédio foi ótimo para controlar a ansiedade, mas a terapia é que realmente ajudou. ;Melhorei principalmente depois que passei a ir à psicóloga toda semana. Finalmente consegui me livrar de vários rituais.;

; Nome fictício a pedido da entrevistada


Ajuda necessária

A necessidade de precisar de algo ou alguém passa dos limites e torna-se dependência quando:

; As atitudes causam constrangimento social, prejuízo à personalidade ou julgamento negativo por parte de amigos e familiares

; O poder de decisão está relacionado com outra pessoa, um objeto ou uma instituição

; A pessoa apoia-se demais em amigos ou familiares para tarefas que deveria realizar sozinha

; O indivíduo não tem autonomia para agir

; A baixa autoestima inibe decisões