Jornal Correio Braziliense

Ciência e Saúde

Médicos anestesistas, os grandes inimigos da dor

Quando, em 16 de outubro de 1846, um dentista norte-americano usou éter pela primeira vez para sedar um jovem que sofreria uma cirurgia, o sofrimento dos pacientes começou a diminuir. Hoje, é impossível imaginar um mundo sem os anestesistas

Embora diretamente responsável pela evolução de técnicas cirúrgicas que permitem poupar milhares de vidas diariamente, a anestesia ainda é encarada com grande temor pelos pacientes. Medo por não ter o domínio da situação, receio do desconhecido e de não voltar a si são algumas justificativas relatadas aos anestesiologistas. É preciso, porém, pensar no sofrimento daqueles que precisavam se submeter a qualquer tipo de operação antes do desenvolvimento das anestesias. Relatos históricos revelam que Hipócrates (460-377 a.C.), universalmente considerado o pai da medicina, usava ópio e algumas ervas para induzir o sono profundo e livrar os pacientes da dor. Os chineses lançavam mão da acupuntura. No entanto, até meados de 1840, quando não era encontrada uma forma de driblar o desconforto, a imobilização e a mordaça eram os recursos normalmente utilizados ; nos procedimentos considerados possíveis, já que não se faziam cirurgias de coração, de rins, de pulmão e de outros órgãos. Na maioria das vezes, o médico agia fria e rapidamente para amputar um membro. Para quem não desmaiava de dor, a agonia era inevitável. Foi assim até 16 de outubro de 1846, data em que o dentista norte-americano Willian Thomas Green Morton usou éter durante a retirada de um tumor de pescoço por um colega cirurgião. O paciente anestesiado era um jovem de 17 anos. A partir daí, a técnica vem evoluindo a ponto de ser considerada pelos especialistas como um dos procedimentos mais seguros da medicina. Segundo o presidente da Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA), Carlos Eduardo Nunes, a desinformação é a responsável pelo temor dos pacientes. Muitos não sabem, por exemplo, que os anestesiologistas cursam seis anos de medicina e fazem mais três de especialização. ;Assim como a cardiologia, a pediatria e a neurologia, a anestesiologia é uma especialidade médica. Somos responsáveis por prover condições cirúrgicas adequadas ao paciente. Atuamos para evitar a dor sem que as funções vitais sejam afetadas a ponto de colocar a vida em risco;, pontua. É o que a técnica em enfermagem Maria José Sampaio, 50 anos, escuta e presencia todos os dias. Mesmo assim, o medo a domina. Ela conta que, há cinco anos, estava empolgada para colocar próteses de silicone nos seios. Quando soube que a equipe médica usaria uma anestesia geral, passou a temer o procedimento e até hoje adia a cirurgia. ;O fato de não ter domínio da situação me aterroriza. Anestesiada, se eu passar mal, não vou conseguir lutar pela vida. Já tentei vencer esse medo. Minha filha é médica, mas o temor é maior do que qualquer vaidade;, admite. Tipos Em linhas gerais, as anestesias são divididas em três grandes grupos. As locais, usadas pelos dentistas ou médicos que fazem pequenos procedimentos sem que seja necessária sedação, não demandam anestesiologistas. Já as regionais ; categoria que inclui a peridural e a raquianestesia ; e a geral, que permite anestesiamento de todo o corpo, devem ser aplicadas exclusivamente pelos médicos especializados. O anestesiologista do Hospital Brasília Frederico Augusto Soares de Lima explica que a anestesia geral promove a depressão do estado de consciência. O cérebro não registra a dor, porque essa sensação não chega até o sistema nervoso central. As drogas têm efeito rápido, tanto que são ministradas continuamente enquanto o procedimento está em execução. Nas anestesias regionais, a dor é bloqueada na espinha e os anestésicos têm duração limitada. ;As drogas anestésicas atuam também em áreas no cérebro que interferem no controle da respiração, da circulação e da manutenção dos batimentos cardíacos. Por isso, o anestesista deve estar presente tanto na cirurgia quanto na sala de recuperação, para monitorar as funções vitais. A tecnologia, sem dúvida, proporciona mais segurança;, observa. A escolha da anestesia leva em conta o tipo de cirurgia, a idade, a condição clínica e o perfil do paciente. Para o professor responsável pelo programa de residência médica em anestesiologia da UnB, Edno Magalhães, mais importante que o aparato tecnológico é a evolução das drogas. Ele lembra que, há 40 anos, a má qualidade dos medicamentos colocava a vida do paciente em risco. As drogas, com exceção do éter, que causava náusea, vômitos e agitação, eram importadas. Atualmente, fármacos e equipamentos são fabricados no Brasil. ;Contamos com drogas específicas para os diabéticos, os cardíacos, os alérgicos e as vítimas de outros problemas que merecem atenção especial. Nos anos 1970, um em cada 10 mil pacientes morria por conta da anestesia. Hoje, a taxa é de um para cada 100 mil. Temos máquinas que nos permitem monitorar numericamente o nível de consciência durante a cirurgia, importante para evitar que se acorde no meio do procedimento;, empolga-se Edno, que foi o primeiro residente de anestesiologia da UnB. Especificidades Para Renato Borges Saito, aluno do último ano de especialização do Hospital Universitário de Brasília (HuB), a anestesiologia é um desafio. Cada paciente demanda uma necessidade específica e o preparo do profissional é tão importante quanto os avanços das drogas e equipamentos. ;Lidamos com pessoas que passam por um momento delicado da vida. A consulta pré-anestésica é essencial para minimizar os receios, avaliar as condições clínicas e esclarecer dúvidas. Não podemos continuar a praxe de conhecer o paciente na mesa de cirurgia. É preciso estabelecer uma relação de confiança. O bom anestesiologista sabe se relacionar;, considera. A servidora pública Luíza de Marilac Almeida, 26 anos, nunca passou por procedimentos cirúrgicos de maior porte, mas até as anestesias locais lhe causam medo. Ela afirma que perde o sono todas as vezes que vai ao dentista. ;Tenho medo de que as anestesias causem alguma sequela e isso me deixa muito nervosa. Sabemos que fatalidades podem ocorrer. Só consigo seguir o tratamento se sentir confiança na conversa com o dentista;, diz. A interação entre a equipe que estará na sala de cirurgia também é cada dia mais valorizada entre os profissionais da anestesiologia. A troca de informação ajuda, inclusive, na escolha adequada da anestesia. Infelizmente, como todo procedimento cirúrgico, a anestesia envolve riscos e alguns problemas ainda ocorrem. O choque anafilático é um deles. ;Não existe um teste para saber se a pessoa é alérgica ao anestésico. A cefaleia pós-raquiana também acomete algumas mulheres. São casos raros, mas possíveis. A expectativa para o futuro é o aprimoramento da genética. Em breve, teremos condições de atender o paciente com base em seu mapeamento. Ele nos dará condições de antever os riscos;, conclui o professor Edno.

Ouça trecho da entrevista com o anestesiologista Frederico Augusto Soares de Lima.

Palavra de especialista Segurança e responsabilidade A evolução dos recursos farmacológicos e tecnológicos contribuiu para maior segurança do paciente e maior responsabilidade do anestesiologista, que não mais se limita à sala de cirurgia e as primeiras horas pós-operatórias. Determinados medicamentos e técnicas anestésicas podem ter repercussões em dias, meses e até anos após o procedimento. O processo cirúrgico anestésico envolve diversos fatores relacionados a estresse, tais como medo, lesão de tecidos, dor, hipotermia, hipotensão, transfusões sanguíneas, infecção e diversos outros elementos que comprovadamente reduzem a imunidade do indivíduo, favorecendo a recidiva de tumores malignos. No câncer de mama e de próstata, existem fortes evidências de que a utilização da anestesia regional, como a peridural, pode reduzir metástases e a mortalidade desses pacientes a longo prazo.A conduta anestésica e de suporte perioperatório, pode também reduzir a incidência de infarto do miocárdio e as mortes de origem cardiovascular no primeiro ano pós cirúrgico. Jorge Tadeu dos Santos Palmieri, presidente da Sociedade de Anestesiologia do DF