Jornal Correio Braziliense

Ciência e Saúde

Acidentes de consumo já são um sério problema de saúde pública

Em um passeio pelo shopping, a produtora Nathalie Sales Amaral, 35 anos, encontrou em uma conhecida loja de departamentos uma réplica perfeita de seu sapato favorito. ;Eu tinha a versão de marca e encontrei um exatamente igual na loja. O melhor: pela metade do preço que havia pago pelo meu;, relembra. Aproveitando a boa oportunidade de continuar utilizando o modelo de calçado que gostava, Nathalie não pensou duas vezes. Entrou, experimentou e comprou o sapato.

A história, que seria apenas uma entre tantas que acontecem em qualquer loja de calçados, teve, no entanto, um desfecho nem um pouco feliz. ;Mais tarde, resolvi estrear o sapato novo. No início, foi tudo bem, mas no meio da noite comecei a sentir dores nos dedos. Como não era nada grave, não me preocupei;, relembra. No dia seguinte, após acordar, ela teve uma surpresa desagradável. ;Quando olhei os dedões dos meus pés, percebi que as unhas estavam totalmente pretas e doendo muito. Poucos dias depois, elas caíram;, conta. Além da dor constante, a produtora teve que passar semanas sem usar calçados fechados. ;Foi horrível. Eu usei o sapato por no máximo seis horas e perdi duas unhas. Fiquei com tanto ódio que joguei ele fora;, conta.

Na época, Nathalie não sabia, mas ela foi mais uma vítima dos chamados acidentes de consumo. ;É assim que são chamados os efeitos negativos que ocorrem quando um cliente utiliza corretamente um produto ou serviço, mas tem sua saúde ou segurança colocada em risco;, explica o diretor substituto da Diretoria de Qualidade do Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro), Paulo Coscarelli. ;Esses acidentes não têm origem certa. Recebemos desde relatos de problemas com produtos de marcas bem estabelecidas até acidentes relacionados a utensílios pirateados;, conta.

O diretor do Hospital São Paulo, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), José Roberto Ferraro, explica que acidentes de consumo são um problema de saúde pública. ;As consequências podem ser gravíssimas e levar até à morte;, alerta. Ele conta que as principais vítimas são as crianças. ;Em um levantamento que fizemos em parceria com outros dois hospitais universitários, constatamos que 60% das vítimas são crianças. É o caso do brinquedo que solta peças com muita facilidade ou de roupinhas que podem sufocar o bebê. Por serem mais vulneráveis, o risco de um acidente ter consequências graves é bem maior;, afirma.

O médico acredita que a notificação compulsória poderia ajudar a minimizar o problema. ;Hoje, se um médico detecta um caso de sarampo, de dengue ou de Aids, por exemplo, ele é obrigado a notificar os órgãos competentes. Se, porém, recebemos uma pessoa que queimou a mão por causa de uma panela de má qualidade ou cortou o dedo devido a uma embalagem de ervilhas malfeita, essa notificação não é obrigatória;, afirma. ;Um bom exemplo é o caso de uma famosa marca de canetas. Crianças inalavam a tampinha que ficava no final do tubo. Devido aos constantes casos, a empresa redesenhou a caneta para essa tampinha não sair com facilidade;, exemplifica José Roberto.

Registros
Para ajudar a diminuir o problema, o Inmetro criou, há três anos, um canal de comunicação com os consumidores, que podem notificar o órgão sobre eventuais acidentes que tenham sofrido. ;Não se trata de uma reclamação, que vá gerar um processo ou responsabilização por danos. Os registros servem para ajudar a orientar nossas ações. Quando uma pessoa reclama de um determinado produto, vamos atrás do fabricante apurar as responsabilidaes;, explica Coscarelli. ;Quando não se trata de um produto de nossa responsabilidade, como os alimentos, por exemplo, nós avisamos o órgão responsável. No caso, a Vigiância Sanitária;, completa.

Apesar de ser pouco conhecido pelos consumidores, o espaço de notificação já surtiu efeito. ;No início do nosso monitoramento o principal alvo de reclamações eram as escadas domésticas dobráveis. As constantes reclamações de acidentes fizeram com que elas entrassem para o grupo de produtos com fiscalização compulsória;, exemplifica. Isso quer dizer que esses produtos passaram a ser fiscalizados de maneira constante. ;Por isso, as reclamações de acidentes diminuíram;, completa.

Ainda não existem estatísticas de vítimas de acidentes de consumo no Brasil. ;Nos Estados Unidos, onde esse monitoramento é feito há mais de 30 anos, o prejuízo anual causado por esse tipo de situação é de 700 bilhões de dólares por ano;, conta Cascorelli. ;Por lá, as agências de fiscalização fazem um monitoramento em hospitais, em busca de dados sobre acidentes de consumo;. O monitoramento hospitalar começou este ano a ser feito no Brasil. ;Por enquanto, o projeto é piloto, realizado em dois hospitais do Rio de Janeiro, mas nossa intenção é expandi-lo para o restante do país;;, afirma.

Se o convênio entre hospitais e órgãos reguladores já estivesse funcionando, um dos casos notificados seria o do empresário André Luiz Guerino, 36 anos. Cerca de duas horas depois de consumir um salgadinho em uma lanchonete da Asa Norte, ele começou a sentir náuseas e enjoos. ;Quando os sintomas começaram a piorar, procurei um pronto-socorro. Cheguei lá com diarreia, fraqueza e calafrios. Estava tão mal que os médicos me internaram na hora;, relembra. A causa do problema foi uma contaminação no alimento que ingeriu. ;Fiquei tão mal que o médico cogitou fazer uma lavagem estomacal e, se não surtisse efeito, teria que fazer uma cirurgia. Foram três dias internado e mais 10 dias de repouso em casa para me recuperar;, relata.

Para ele, a pior parte do problema é a dificuldade de prevenção. ;O local onde comi é bastante tradicional. É difícil prever quando esse tipo de coisa vai acontecer e, quando ocorre, provar e pedir uma reparação pelo problema é mais difícil ainda;, afirma, em referência à dificuldade de mostrar à Justiça que o problema de saúde foi causado por um produto contaminado. ;Quem guarda nota fiscal de lanchonete? Pelo menos, depois disso aprendi: sempre que compro qualquer coisa, guardo os comprovantes por um bom tempo. Assim fica mais fácil de correr atrás dos meus direitos;, conclui.