A vida de Kay Russell (leia entrevista), 49 anos, sofreu uma reviravolta desde janeiro passado, quando ela começou a falar de forma estranha. Duas crises de enxaqueca roubaram-lhe os movimentos dos membros, de forma momentânea. No entanto, o dano maior foi causado à expressão verbal. Como consequência das fortes dores de cabeça, Kay desenvolveu uma doença chamada síndrome do sotaque estrangeiro. Subitamente, a britânica começou a se comunicar como se fosse francesa. Até então, o único contato com o idioma havia sido na escola e em três rápidas viagens à França. Sem entender o porquê de agir daquela maneira, ela procurou ajuda do neurologista Nicholas Miller, professor do Instituto de Ciências da Saúde, Sociais, da Fala e da Linguagem da Universidade de Newcastle e um dos poucos especialistas nesse distúrbio.
Por e-mail, Miller explicou ao Correio que desordens neurológicas, como derrames e lesões cranianas, muitas vezes afetam as áreas cerebrais envolvidas na programação e no controle dos movimentos da língua, dos lábios e das cordas vocais. ;Por isso, a fala é alterada;, afirma. ;Apenas cerca de 100 casos já foram reportados na literatura científica, mas é mais comum do que isso ; a maior parte das pessoas se queixam do sintoma por poucas semanas ou meses;, acrescenta. Segundo ele, o portador soa como se estivesse falando com o sotaque de um idioma diferente. ;Alguém que fala português de repente parece alemão, norueguês ou francês. Uma pessoa do sul de um país também pode parecer falar como se fosse procedente do norte;, revela o especialista.
Miller explica que casos como o de Kay são ;muito raros;. ;Como a enxaqueca é um distúrbio neurológico, ela pode causar a síndrome do sotaque estrangeiro;, admite. O neurologista comenta que, na maioria das vezes, a doença retrocede espontaneamente. ;Casos persistentes são raros, mas a cura completa é difícil;, observa. As consequências da desordem são quase sempre profundas. ;A fala e a linguagem integram nossa identidade ; se são afetadas, a síndrome também pode afetar nossa personalidade;, observa Miller. O tratamento se restringe à psicoterapia e à fonoaudiologia. ;A psicoterapia vai ajudar o portador a enfrentar o enorme impacto psicológico e social que o novo sotaque pode apresentar. A fonoaudiologia o auxiliará a falar da maneira como costumava;, acrescenta.
Brasil
O neurologista Gabriel de Freitas, presidente da Sociedade Brasileira de Doenças Cerebrovasculares (SBDCV), diz que a síndrome não é comum, apesar de subdiagnosticada. ;Provavelmente, ela é menos rara do que se pensa. As pessoas não fazem o diagnóstico. As principais causas são lesões cerebrais, como o derrame e tumores;, explica. O especialista carioca diz que, quando se conversa com um paciente, tem-se a impressão de estar falando com uma pessoa de outro país. Em 2001, Freitas atendeu a um jovem, acometido de hemorragia cerebral provocada por uma malformação. ;Quando eu o examinei pela primeira vez, pensei que fosse estrangeiro. Fizemos uma filmagem dele respondendo a várias perguntas e mostramos a 10 pessoas. Quase todas achavam que ele não fosse brasileiro;, relata o médico. ;O mais interessante é que um achou que ele fosse americano, outro que fosse espanhol, outro alemão. Ou seja, a síndrome não causa um sotaque típico, mas a sensação de que o paciente está falando um sotaque;, conclui.
Freitas esclarece que a única cura existente passa pela eliminação da lesão. ;Como nosso paciente teve uma hemorragia e ela foi absorvida com o tempo, o sotaque desapareceu ao mesmo tempo que o sangramento;, comenta. O caso clínico do brasileiro foi publicado pela revista científica European Neurology, em 2004.
Ouça trecho da entrevista com o neurologista Gabriel de Freitas, presidente da Sociedade Brasileira de Doenças Cerebrovasculares
Surpresa indesejável
Saiba mais sobre a síndrome, identificada pela primeira vez em 1941.
O que é
Desordem neurológica da fala adquirida por meio de danos ao cérebro.
Características
; O portador passa a falar com um sotaque estrangeiro ou regional diferente, o qual nunca falara antes
; O paciente pode jamais ter tido qualquer contato com alguém proveniente de onde tal sotaque é comum
; Também não há qualquer razão social, psicológica ou psiquiátrica para adotar o modo alterado de fala
Duração
; Os sintomas podem durar poucos dias ou chegar a meses. Para um número reduzido de pacientes, as mudanças na fala persistem e se mantêm, apesar das sessões de fonoaudiologia.
Causas
Uma gama de condições neurocomportamentais ; entre elas, a depressão, o transtorno bipolar, a esquizofrenia e o delírio ; tem ligações com o sotaque alterado. A imensa maioria dos casos reportados de síndrome do sotaque estrangeiro têm raiz neurológica.
Histórico
A síndrome foi observada pela primeira vez em 1941, durante a Segunda Guerra Mundial. Uma mulher atingida em um bombardeio aéreo sobre Oslo (capital da Noruega) sofreu traumatismo craniano, o que provocou uma lesão no hemisfério esquerdo do cérebro e problemas na fala. Um ano depois, a linguagem melhorou, mas o discurso tinha ritmo e melodia alterados, sugerindo um sotaque alemão. Oficialmente, foi descrita pela primeira vez pelo neurologista Monrad-Krohn, em 1947, que acompanhou o caso.