Causadora da febre tifoide e das gastroenterites, a salmonela (1) também pode ser uma importante arma no combate ao câncer. Uma pesquisa publicada na edição de ontem da revista especializada Science Translational Medicine constatou que a bactéria é capaz de induzir uma resposta imunológica no organismo, que passa a matar as células do tumor. A partir da descoberta, acredita-se que será possível desenvolver, no futuro, uma vacina contra o câncer e um medicamento eficaz para tratar a doença.
Naturalmente, no início do tumor, as células que patrulham o sistema imunológico reconhecem as células cancerígenas como um agente estranho e tratam de matá-las. Esse processo acontece graças à conexina 43, uma proteína que forma canais de comunicação entre diferentes tipos de células. Fragmentos das proteínas do tumor chamadas peptídeos escapam por esses canais e entram nas células imunes. Elas rapidamente movem os peptídeos para a superfície ; é uma forma inteligente de mostrar às outras células quem elas devem atacar.
Com o tempo, porém, as células cancerígenas se proliferam, tornando-se invisíveis para as células imunes. A conexina 43 é suprimida à medida que o câncer cresce. A pesquisa descrita na Science conseguiu, com a salmonella, fazer com que os peptídeos se tornassem visíveis novamente e, portanto, prontos para serem atacados e destruídos. Injetada nas células, a bactéria consegue reativar a conexina 43, colocando o sistema imunológico novamente em prontidão.
;Em nosso laboratório, há alguns anos, decidimos tentar fazer com o que o tumor voltasse a ser visível para o sistema imunológico, transformando o câncer em uma infecção. Decidimos usar a salmonela porque previamente já foi mostrado que ela reage bem em locais onde há tumores quando injetada por meio intravenoso. Além disso, é uma bactéria fácil de ser manipulada geneticamente;, explicou ao Correio uma das autoras do artigo, Maria Rescigno, pesquisadora do Instituto Europeu de Oncologia. ;Existem várias linhagens da salmonela que podem ser atenuadas, de forma a não causar doenças e ser usada com segurança em humanos. Nós já estamos fazendo um teste em pacientes com câncer de pele, no qual a salmonela é injetada diretamente no tumor.; Os cientistas descobriram que, ao injetar a salmonella no câncer, a bactéria induz o recrutamento das células imunes, e tem um efeito tanto no crescimento do tumor quanto nos que existem, mas estão sem tratamento. ;Isso sugere que a salmonella tem um grande efeito antitumoral;, comemora Maria Rescigno. Depois de constatar que a bactéria ativava o sistema imunológico, os cientistas pesquisam a razão desse efeito.
Eles descobriram que a salmonella permitiu a formação de canais entre as células cancerígenas e as células dendríticas ; essas últimas, as ;guardiãs; dos sistema imunológico. Através desses canais, pedaços dos peptídeos do tumor passam para as células dendríticas. ;A partir daí, os peptídeos se transformam em ;impressões digitais; do tumor. Na superífice das células, é como se eles fossem uma bandeira vermelha, permitindo que o organismo as reconheça como uma célula tumoral;, diz a pesquisadora. Os efeitos foram verificados tanto em ratos quanto em células humanas cultivadas in vitro. Os resultados foram bastante animadores. A salmonela tanto pode ser uma aliada no combate ao câncer já instalado quanto o princípio ativo de uma vacina. ;Conseguimos mostrar que é possível gerar protocolos imunoterápicos efetivos no controle do crescimento dos tumores;, diz a cientista.
1 - Alto risco
A salmonella é um grupo de bactérias composto por duas espécies: Salmonella bongori e Salmonella enterica. Somente esta última possui 200 sorotipos diferentes. Entre eles, está o S.typhi, que causa febre tifoide e o S. typhimurium, que provoca gastroenterites. A bactéria é encontrada em alimentos contaminados e na água contaminada.
Entrevista // Maria Rescigno
Por que os resultados são tão animadores?
Quando uma célula normal se transforma em um tumor, ela alerta o sistema imunológico, mudando seu status. As células imunes reconhecem as células cancerígenas e conseguem matá-las. Infelizmente, à medida que o tumor cresce, acontece de o câncer encontrar formas de enganar o sistema imunológico e tornar-se invisível a ele. Nós conseguimos fazer com que ele fosse novamente reconhecido e, consequentemente, eliminado pelo próprio organismo.
Quais as implicações da pesquisa?
Na pesquisa que fizemos com ratos que tinham tumores, observamos que, ao infectar as células tumorais com a salmonella, foi possível formar os canais de comunicação entre as células, de forma a obter uma resposta imune, que foi efetiva mesmo para tumores ainda não tratados. Essa resposta depende da formação dos canais. Conseguimos demonstrar que é possível explorar esse mesmo mecanismo para gerar protocolos imunoterápicos que sejam eficientes no controle do crescimento de tumores já estabelecidos ou mesmo criar vacinas contra os tumores.
A senhora está fazendo mais pesquisas a respeito? Quais os próximos passos?
Queremos transmitir esse conhecimento para humanos, gerando vacinas nas quais as células dendríticas do melanoma (câncer de pele) sejam infectadas pela salmonella. A presença da bactéria vai induzir a formação dos canais e a passagem dos peptídeos do tumor para as células do sistema imunológico. Assim, o tumor vai deixar sua "impressão digital" e poderá ser atacado. As células dendríticas serão purificadas e reinfundidas no organismo, para gerar uma resposta imune a partir do tumor do próprio paciente.