Em 1962, o geógrafo norte-americano Joseph Tossi Junior percorreu a região do município de Jaíba (MG) a fim de estudar a ocupação do solo. A expedição tinha como objetivo ajudar o desenvolvimento da agricultura no local, mas, durante os dias em que passou no município, Tossi se deparou com uma espécie de peixe muito peculiar, encontrada após a perfuração de um poço comunitário. O animal, que não possui olhos nem pigmentos no corpo, foi descrito dois anos mais tarde, sendo denominado Stygichthys typhlops. Desde então, nenhuma outra pesquisa descreveu a rara espécie, pertencente à ordem dos Characiformes, na qual está incluída boa parte dos peixes de água doce do Brasil, como piranhas, traíras e lambaris.
Agora, o S. typhlops voltou a ser identificado em um estudo recente desenvolvido pelos pesquisadores Cristiano Moreira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e Eleonora Trajano, da Universidade de São Paulo (USP). Os cientistas percorreram a região de Jaíba durante uma expedição que contou com a ajuda de mais quatro pessoas. Durante o percurso, eles entrevistaram moradores, coletaram dados e, como um quebra-cabeça, foram encaixando peça por peça até que o animal finalmente pudesse ser encontrado.
Para a surpresa dos pesquisadores, várias pessoas da região se lembravam da existência de peixes dentro de poços. ;Entretanto, a maioria dos poços estava seca. Encontramos água em apenas dois deles e, consequentemente, espécimes de Stygichthys. Alguns exemplares foram preservados ainda em campo e o resto foi levado com vida para o laboratório na USP. Uma expedição subsequente foi realizada para capturar mais exemplares vivos;, conta Cristiano Moreira. As observações dos especialistas em campo mostraram que a espécie em questão só ocorre no aquífero (reservatório subterrâneo de água) a sudoeste de Jaíba. ;Apesar de abundante nesse ambiente, ela sofre ameaça de extinção;, alerta o cientista.
O risco de sumir para sempre da natureza, segundo o professor da Unifesp, se deve ao consumo excessivo da água na região para finalidade agrícola. ;O uso tem sido superior à capacidade de recuperação do aquífero e tem feito com que, desde a década de 1980, o nível diminua cada vez mais. Por isso, tivemos tanta dificuldade em encontrar um poço com água;, conta.
Por meio do estômago de exemplares desse peixe, analisados com o auxílio de radiografias, os autores do estudo também observaram que a espécie se alimenta de um tipo de crustáceo que só ocorre naquele reservatório. ;Isto indica que a depauperação do aquífero poderá provocar a extinção de espécies ainda desconhecidas pela ciência;, afirma.
[SAIBAMAIS]A partir do alerta emitido pelo estudo, os pesquisadores esperam que alguma medida efetiva seja tomada a tempo, a fim de reverter a situação. ;Acredito que a inclusão do S. typhlops na lista de espécies ameaçadas possa servir para uma maior preservação dos ambientes subterrâneos naquela região, bem como de outras no restante do país;, enfatiza o pesquisador da Unifesp.
Fatores de risco
Na opinião do professor da Unesp Alexandre Marco da Silva, a poluição dos recursos hídricos, especialmente os superficiais, é um problema que vem afetando a cadeia alimentar de vários ecossistemas aquáticos. Segundo ele, o continente americano possui uma enorme variedade de peixes, sendo alguns de ocorrência ampla, como é o caso dos lambaris. Já outras, de ocorrência mais restrita, vêm sofrendo sérias pressões e risco de extinção, como o pintado e o pirarucu.
Silva, que trabalha no Núcleo de Automação e Tecnologias Limpas da Unesp, diz que a biologia de várias espécies de peixe ainda precisa ser mais bem conhecida. ;Muitas correm o risco de extinção antes mesmo de serem devidamente conhecidas ou sequer catalogadas;, destaca. Para ele, os tipos de poluição que vêm afetando as espécies de peixes é variável, mas a alteração ambiental decorrente da destruição das matas ciliares pode ser apontada como um dos fatores principais. ;Isto porque, após a remoção da vegetação, ocorre uma série de alterações na qualidade da água e na geometria do curso da água;, enfatiza.
A pesca indiscriminada de algumas espécies é outro fator de dizimação. ;Sendo assim, políticas públicas que incentivem o cumprimento de leis, tais como as relacionadas à conservação ou recuperação das áreas de preservação permanente, são importantes. Elas criam condições de habitat para as comunidades ictiofaunísticas (conjunto de espécies de peixes), além de regular a pesca;, finaliza.