Jornal Correio Braziliense

Ciência e Saúde

Sacrifício materno

Pesquisadores da Universidade Federal de Uberlândia observam que fêmeas da espécie de aracnídeos Paratemnoides nidificator permitem que os filhotes as devorem quando há escassez de alimento. Ato garante união e sobrevivência da colônia

Eles se assemelham a escorpiões, porém são tão pequenos que mal podem ser vistos a olho nu. Além disso, não possuem cauda e ferrão. Por isso, são conhecidos como pseudoescorpiões. Essa, no entanto, não é a única curiosidade a respeito dos animais da espécie Paratemnoides nidificator. Por meio de observações em laboratório, cientistas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) notaram que, em situações de falta de alimento, as fêmeas permitem que os filhotes as devorem. Segundo a pesquisa, tal comportamento acaba com a rivalidade entre os irmãos e ajuda na formação de uma sociedade estável.

O artigo foi publicado na revista especializada Acta Ethologica pela dupla de pesquisadores Kleber Del Claro e Everton Tizo-Predoso, que já realizaram outras investigações em parceria. Segundo Del Claro, até então havia pouca literatura publicada sobre os pseudoescorpiões, principalmente no Brasil. A maioria dos trabalhos era da área de taxonomia (ciência da identificação), havendo escassez de material sobre a biologia ou a ecologia desses aracnídeos. ;Percebemos que, na falta de alimentos, o comportamento dos animais se alterava. Foi aí que decidimos isolar a fêmea e sua ninhada, a fim de sabermos como eles agiriam. Para a nossa surpresa, a fêmea emitia um sinal para sua prole, permitindo, dessa forma, que os filhotes começassem a devorá-la;, conta.

A observação mostrou que, depois de se alimentar da mãe (matrifagia), os filhotes passaram a viver em conjunto, sendo que o processo de sociabilidade entre eles ficou mais forte. ;Já aqueles que foram impedidos por nós de se alimentarem da mãe acabaram se desagregando, ou seja, cada um seguiu para um lado;, afirma Del Claro. ;O ato no qual a mãe se doa como alimento para os filhos até a morte fortifica os laços entre os indivíduos;, completa.

Entretanto, nem todas as fêmeas de pseudoescorpiões se entregam dessa maneira. Algumas mais jovens chegam a se alimentar da prole na escassez de alimentos. ;Talvez pelo fato de terem tempo de sobra para se reproduzir;, enfatiza Del Claro. De acordo com seu colega Tizo-Pedroso, os P. nidificator constituem colônias muito organizadas, com distinção de tarefas entre machos, fêmeas e filhotes, mas sem a existência de uma rainha morfológica. ;Os adultos cuidam de todos os filhotes da colônia. Juntos, os indivíduos são capazes de capturar presas muito maiores do que eles mesmos, como formigas, besouros e percevejos, que servirão de alimento para a colônia, previlegiando sempre os filhotes;, afirma. Outros aracnídeos não apresentam as mesmas características. Aranhas sociais, por exemplo, fazem questão de manter espaços separados na teia comunitária.

Tizo-Pedroso teve o primeiro contato com os pseudoescorpiões assim que entrou para o curso de ciências biológicas, há 10 anos. ;Um colega levou um vidro cheio desses animais para a sala de aula. Ele havia encontrado em uma árvore próxima de casa e queria saber o que eram. Também fiquei curioso e, com o frasco em mãos, iniciei uma busca por informações sobre a diversidade, a ecologia e o comportamento desses bichinhos;, destaca. Ele conta que, em 2001, tornou-se aluno de Del Claro e, entusiasmado, procurou o docente com um pedido específico. ;Propus que iniciássemos um estudo sobre o comportamento desses aracnídeos como um possível projeto de iniciação científica. A parceria e o projeto deram certo. Hoje seguimos com projetos subsequentes ao meu doutoramento;, diz.

Adoção
Sobre o autossacrifício da mãe, Tizo-Pedroso diz que, ao oferecer seu próprio corpo como alimento, a fêmea garante não apenas uma grande porção de alimento à ninhada, mas também reduz expressivamente o canibalismo. ;Depois de consumirem o corpo da mãe, eles estão suficientemente grandes para realizar as tarefas dos adultos, especialmente caçar coletivamente suas próprias presas. Apesar do sacrifício, a mãe garante a coesão e a sobrevivência dos seus filhotes;, garante. Além disso, conforme a observação em laboratório, os jovens costumam ser adotados por outras fêmeas e até por machos das colônias. ;São estratégias com grandes efeitos positivos para a manutenção da vida social desses pequenos animais.;

De acordo com a bióloga e professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Isabela Rinaldi, a matrifagia em aracnídeos e insetos é uma prática observada apenas em algumas espécies. ;É um extremo cuidado com a prole, uma das táticas que a natureza utiliza para aumentar a sobrevivência e a continuidade da espécie. A vantagem desse comportamento é que os filhotes têm um crescimento acelerado e retardam sua dispersão. Isso lhes garante maior taxa de sobrevivência do que quando se dispersam precocemente;, diz. Aracnídeos são animais fantásticos em termos comportamentais, segundo Isabela. ;Como são predadores, quando os vemos agregados, socializados, realizando complexos ritos de cortejo ou imitando outros animais para ganhar proteção ou iludir as presas, ficamos mesmo impressionados;, finaliza a bióloga.

ENTREVISTA

1. Me fale um pouco dos pseudoescorpiões. Como eles são, como vivem, em quais regiões podem ser encontrados com maior facilidade? Quais as diferenças e semelhanças entre esses animais e os escorpiões já conhecidos?

Os pseudoescorpiões são aracnídeos muito pequenos, com tamanho variando entre 2 e 8 mm de comprimento. São animais inofensivos e muito pouco conhecidos. A maioria das espécies vive no folhiço, a camada de folhas que recobre o solo das florestas. Outras vivem entre os fragmentos das cascas de algumas árvores, hábito predominante entre os pseudoescorpiões do Cerrado brasileiro. De modo geral, os pseudoescorpiões da América do Sul são muito pouco conhecidos, especialmente no que tange ao comportamento e à ecologia. No Brasil, contamos com um número relativamente pequeno publicações. Esses pequenos predadores, à primeira vista, assemelham-se ao escorpiões verdadeiros, em versão diminutas com aquelas garras (os pedipalpos quelados), mas sem o pós-abdome e o aguilhão inoculador de peçonha (a cauda), daí o nome falso-escorpião. Apesar dessa semelhança, são grupos filogeneticamente distantes (a origem evolutiva dos dois grupos é antiga e distante).

2. O que motivou a pesquisa dos pseudoescorpiões?

Tive contato com os pseudoescorpiões durante o primeiro ano no curso de ciências biológicas, em 2000. Um colega levou um vidro cheio desses animais para a sala de aula, depois de encontrá-los em uma árvore próxima de casa. Ganhei o frasco repleto de pseudoescorpiões e, com isso, iniciei uma busca por informações sobre a diversidade, ecologia e o comportamento desses bichinhos. Já em 2001 fui aluno de uma disciplina ministrada pelo professor Kleber Del Claro, um renomado pesquisador de ecologia comportamental e de interações da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Entusiasmado, procurei-o com um pedido bem específico. Propus iniciarmos um estudo sobre o comportamento desses aracnídeos como um possível projeto de iniciação científica. A parceria e o projeto deram super certo. Hoje, seguimos com projetos subsequentes no meu doutoramento.

3. Qual comportamento mais chama a atenção desse animal? Porque algumas fêmeas acabam servindo de alimento para os filhotes?

Os pseudoescorpiões apresentam muitos comportamentos interessantes e únicos. Entretanto, são animais predominantemente solitários. A espécie que temos estudado, os Paratemnoides nidificator, exibe uma vida social quase singular entre os pseudoescorpiões. Apenas duas espécies, entre as mais de 3.400 conhecidas, vivem em colônias altamente especializadas, semelhantes àquelas que vemos entre as formigas, cupins e muitas abelhas e vespas. Estes pseudoescorpiões constituem colônias, às vezes com duas ou três centenas de indivíduos, embaixo das cascas das sibipirunas (uma árvore amplamente empregada na arborização urbana no Brasil), que possui tronco muito suberoso. As colônias são formadas por câmaras de seda (para reprodução ou ecdise dos jovens), que também servem como abrigos para os animais. Os Paratemnoides nidificator constituem colônias muito organizadas, com distinção de tarefas entre machos, fêmeas e filhotes, porém, sem a existência de uma rainha morfológica. Todos os adultos cuidam de todos os filhotes da colônia. Juntos, os indivíduos são capazes de capturar presas muito maiores do que ele mesmos, como formigas, besouros e percevejos, que servirão de alimento para a colônia, previlegiando sempre os filhotes.

O cuidado parental é realmente fascinante e envolve uma série de estratégias diferentes. Além de buscar maior sobrevivência dos filhotes, o cuidado favorece indiretamente a coesão dos jovens e, consequentemente, a manutenção da vida social. Em condições extremas e de carência alimentar, o cuidado maternal pode envolver o autosacrifício da mãe. Os filhotes podem se tornar canibais se expostos a longos períodos de fome, geralmente resultando na morte da ninhada. Oferecendo seu próprio corpo como alimento aos filhotes, a mãe garante não apenas uma grande porção de alimento, mas reduz expressivamente o canibalismo entre eles. Depois de consumirem o corpo da mãe, os filhotes estão suficientemente grandes para realizar as tarefas dos adultos, especialmente caçar coletivamente suas próprias presas. Apesar do sacrifício, a mãe garante a coesão e a sobrevivência. Além disso, os jovens podem ser adotados por outras fêmeas das colônias ou mesmo pelos machos. Todas essas são estratégias com grandes efeitos positivos para a manutenção da vida social entre esses pequenos animais.