O anúncio da criação de uma célula de bactéria com genoma artificial pela equipe de cientistas do instituto fundado pelo biólogo Craig Venter provocou reações diversas do governo dos Estados Unidos (EUA) e de representantes da Igreja Católica. Para a ciência, a descoberta dos norte-americanos significou um avanço com múltiplas aplicações potenciais, que deve permitir a compreensão dos mecanismos da vida. Por outro lado, autoridades católicas italianas expressaram perplexidade e preocupação diante do fato.
O presidente Barack Obama pediu que conselheiros especializados em biotecnologia do país façam uma análise detalhada das implicações da tecnologia. Segundo Obama, a Comissão Presidencial para o Estudo de Questões Bioéticas deve considerar o potencial médico, ambiental, de segurança e outros benefícios desse campo de pesquisa, assim como seus riscos potenciais.
O estudo da primeira célula sintética foi divulgado na revista especializada Science pelos cientistas do J. Craig Venter Institute (JCVI), na quinta-feira. Ontem, o bispo Domenico Mogavero, presidente da Comissão para Assuntos Jurídicos da Conferência Episcopal Italiana, classificou a pesquisa como um ;devastador salto ao desconhecido;. ;O homem vem de Deus, mas não é Deus. Ele é humano e tem a possibilidade de dar a vida procriando, e não construindo-a artificialmente;, acrescentou, em entrevista ao jornal italiano La Stampa. Em seu discurso, o religioso se referiu às inúmeras aplicações do novo método, entre eles, a produção de organismos artificiais, no futuro.
Por outro lado, o padre Federico Lombardi, porta-voz do Vaticano, foi bastante prudente ao falar sobre o assunto. ;É preciso esperar para sabermos mais sobre essa descoberta;, afirmou. O monsenhor Rino Fischella, principal bioeticista do Vaticano, também foi mais prudente: ;É uma grande descoberta científica. Agora temos de entender como ela será implementada no futuro;.
Consulta
Questionado sobre a possibilidade de estar ;brincando de Deus;, Venter disse que a afirmação tem sido um clichê toda vez que uma descoberta do tipo é divulgada. O cientista enfatizou ainda que o estudo não criou a vida do zero, mas a partir de uma outra já existente, por meio de um DNA artificial, que reprogramou as células.
De acordo com as declarações do biólogo, inúmeros especialistas na área de ética foram consultados pela equipe antes que o trabalho fosse iniciado. Ainda segundo ele, o próprio governo norte-americano foi informado do conteúdo do estudo, devido às implicações de segurança, já que a técnica poderia ser usada para sintetizar armas biológicas.
No entendimento do presidente Barack Obama, a comissão presidencial que discutirá a criação da célula com genoma artificial deve formular recomendações. O intuito, segundo ele, é ;garantir que os Estados Unidos colham os benefícios dessa área científica enquanto identificam os limites éticos e diminuem os riscos;. O grupo formado pelo presidente deve se reunir para uma primeira audiência já na próxima semana.
As reações já eram esperadas por Venter. Ele declarou que ele e a equipe se envolveram por completo no estudo, porém, o foco também estava no direcionamento correto da invenção. ;Esperamos ansiosos pelas revisões do trabalho e constante diálogo sobre as importantes aplicações desse trabalho;, afirmou na ocasião da divulgação do estudo.
Múltiplas aplicações
O anúncio da célula com genoma artificial repercutiu imediatamente no meio científico. Para o professor de bioética da Universidade da Pensilvânia Arthur Caplan, o homem de fato está tentando reformar a natureza, mas ele não vê nenhum problema ético nisso. ;Não existe nenhum limite dizendo que o homem pode domesticar animais ou alterar geneticamente sementes, mas não pode sintetizar micróbios;, afirma em entrevista por e-mail ao Correio. Caplan diz que existe o perigo de a técnica fugir de controle. ;Precisamos regulamentá-la e levá-la a sério, pois os benefícios podem ser enormes.;
De acordo com Mayana Zatz, diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), o procedimento pode ajudar a ciência na produção de bactérias úteis, como aquelas empregadas na fabricação de vacinas ou mesmo na digestão de petróleo. Sobre a questão ética, Mayana relembra o episódio da ovelha Dolly ; o primeiro clone de um mamífero, apresentado em 1997. ;Nesse período houve uma grande discussão em torno da ética, mas as pessoas se acalmaram. Não temos o poder de criar ou fazer qualquer coisa no mundo. Estamos muito mais limitados do que se imagina.;
Esclarecimentos
Para que não haja alarmes desnecessários, Mayana acha importante esclarecer o público leigo. ;Na verdade, os pesquisadores transformaram uma célula viva em outra célula. O que foi colocado de diferente é o genoma. O certo, então, é falarmos em uma célula programada;, explica. Para o chefe da disciplina de microbiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Marcelo Briones, a importância desse trabalho é inicialmente técnica, pois mostra ;como fazer;. ;Há uma grande diferença entre biologia sintética e vida artificial. A longo prazo, várias são as possibilidades existentes, inclusive, de desenharmos um organismo do jeito que quisermos.;
Segundo Gonçalo Pereira, do Laboratório de Genômica Funcional da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), fazer com que uma célula funcione não é algo fácil. ;Uma analogia para explicar o fato seria a fabricação de um carro. Os cientistas norte-americanos, na verdade, produziram um motor com várias partes novas, porém, ainda não sabem como fazer todo o resto;, diz. Por outro lado, segundo ele, não há dúvidas de que a biologia sintética dará origem a organismos novos ou modificados, que serão responsáveis por elementos ainda não criados pela natureza.
Colaborou Rodrigo Craveiro