Desde o Antigo Egito, alquimistas procuravam transmutar em ouro partículas de metais menos nobres, para obter o ;elixir da vida;, um remédio que curaria todas as doenças e garantiria a imortalidade. A pedra filosofal, da qual se extrairia todo o conhecimento científico, nunca foi encontrada. Hoje, entretanto, a medicina mostra que, de fato, no ouro pode estar a cura para uma das doenças que mais matam em todo o mundo: o câncer.
Pesquisas desenvolvidas nos Estados Unidos conseguiram obter do ouro nanopartículas (1) promissoras para a detecção e o tratamento do câncer. A mais recente, publicada no fim de abril no periódico da Academia Nacional de Ciências, mostrou que, dentro do organismo, as estruturas são capazes de se ligar a um receptor específico das células que formam os tumores de próstata, mama e pulmão.
;Quando são injetadas no corpo, as nanopartículas conseguem encontrar o receptor cancerígeno do peptídeo liberador de gastrina (GRP, sigla em inglês). Isso permite encontrar precisamente o local onde está o tumor;, disse ao Correio um dos autores do estudo, o radiologista Kattesh Katti. ;Consequentemente, as propriedades radioterapêuticas dessas minúsculas estruturas são enormes. Elas fornecem a localização precisa do tumor, ajudando na detecção precoce e no tratamento do câncer;, afirma.
Os peptídeos são moléculas formadas pela ligação de aminoácidos. Já a gastrina é um hormônio produzido pelo organismo. Pesquisas têm mostrado que a presença abundante do peptídeo liberador da gastrina (GRP) é um fator de proliferação das células neoplásicas e, consequentemente, da progressão do câncer. Como são moléculas muito específicas, a ciência busca nas terapias-alvo uma forma de identificar e combater o receptor do GRP. Já foi provado que a superdosagem desse receptor está relacionada aos cânceres de próstata, mama e pulmão.
Menos danos
Com as nanopartículas obtidas do ouro, um dos benefícios para os pacientes seria um tratamento mais efetivo, com menos efeitos colaterais. Já que os receptores do GRP podem ser facilmente localizados por essas microestruturas, quando submetido à radioterapia, o organismo da vítima do câncer ficaria menos exposto, pois seria possível focar o medicamento apenas nas células doentes.
;O desenvolvimento das nanopartículas de ouro específicas para o receptor do GRP é um passo crítico e significativo em direção à utilidade dessas estruturas para o tratamento de vários tipos de câncer e para o aprimoramento do diagnóstico por imagem;, aposta Sanij Sam Gambhir, diretor do Programa de Imagem Molecular da Stanford University. Ele foi convidado pelo periódico da Academia Nacional de Ciências para comentar o trabalho de Katti, que há cinco anos vinha pesquisando o desenvolvimento de uma terapia-alvo baseada em nanopartículas de ouro.
Segundo o médico Raghuraman Kannan, coautor do estudo, a descoberta ;representa uma oportunidade realista para uma nova abordagem clínica;. ;Não apenas no que diz respeito às tecnologias de diagnóstico para a detecção em estágio inicial, mas também para o tratamento de tumores na próstata, nas mamas, e de pequenas células do câncer de pulmão.; Juntos, Kannan e Katti já desenvolveram uma biblioteca de mais de 85 nanopartículas usadas para o diagnóstico molecular e o tratamento de doenças.
Outro estudo recente, publicado em março na edição on-line do jornal especializado Nanotecnologia, mostrou que as nanopartículas de ouro também podem atuar na detecção e na morte das células que causam o câncer colorretal. Para matar o tumor, as microssubstâncias, que se fixam nas moléculas cancerígenas, recebem uma descarga de raio infravermelho. A radiação do laser é absorvida pelo ouro, que esquenta. Como a nanopartícula está grudada na célula do tumor, esse calor passa para ela, que morre imediatamente.
;Essa é a tão chamada terapia inteligente. Para ser uma terapia inteligente, o tratamento tem de atingir seu alvo, possuir habilidades para se ativar somente quando encontra esse alvo e, então, conseguir matá-lo. Nesse caso, matar apenas as células do câncer;, explicou ao Correio Carl Batt, que liderou a pesquisa custeada pelo Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer. O objetivo do trabalho é melhorar a tecnologia para que seja possível usar o tratamento em testes clínicos, realizados em humanos. ;Se conseguirmos clinicamente exterminar apenas as células cancerígenas, aquelas que estão ao seu redor, mas são saudáveis, não serão afetadas;, sustenta, no estudo, o principal autor da pesquisa, Dickson Kirui. Segundo Batt, o ouro é um metal ideal para as terapias inteligentes porque é biocompatível, inerte e relativamente fácil de ser quimicamente alterado.
Ao mudar o tamanho e o formato das partículas desse material, é possível fazer com que elas respondam a diferentes ondas de energia. O calor que emana do ouro, quando ativado por raio laser, é apenas alguns graus acima da temperatura normal do corpo, o suficiente para matar as células cancerígenas sem prejudicar o restante do organismo.
Desafio
Uma das dificuldades no uso das nanopartículas de ouro no combate às células que produzem os tumores malignos é quando o câncer está localizado em partes do corpo que a luz do laser não consegue atingir, como a garganta. Porém, de acordo com cientistas do Instituto de Tecnologia da Universidade de Geórgia, nos Estados Unidos, o desafio está perto de ser solucionado.
;Desenvolvemos um sistema que pode matar as células ativando calor nas nanopartículas do ouro. Mas e se o câncer está em um local onde não conseguimos chegar com o laser? Para resolver esse problema, associamos o ouro a um composto químico que, quando grudado ao núcleo da célula cancerígena, faz com que ela pare de se dividir;, disse, em artigo publicado no periódico especializado Jornal da Associação Americana de Química, Mostafa El-Sayed, diretor do Laboratório de Laser da faculdade. De acordo com ele, isso é suficiente para matar o tumor.
;No câncer, o núcleo divide-se muito mais rápido do que em uma célula normal. Então, se pudermos impedir que ocorra essa divisão, podemos parar o desenvolvimento do tumor;, explicou. A equipe de El-Sayed testou a técnica em células retiradas da orelha, do nariz e da garganta de pacientes que têm câncer. Assim como nas demais pesquisas, as nanopartículas de ouro conseguiram matar apenas as células cancerígenas, sem afetar as saudáveis.
1 - Sem consenso
De acordo com o Laboratório de Estudo do Estado Sólido da Universidade de Campinas, não há um consenso internacional sobre o que são as nanopartículas. Porém, pode-se considerar como tal as substâncias menores que 100 nanômetros, unidade que corresponde a um milionésimo de milímetro. Ao serem obtidas de um determinado material sólido, elas ganham propriedades físicas, químicas e mecânicas diferentes da substância de origem.