Carne de sol e charque ou carne seca. As duas formas de carnes desidratadas curtidas com sal são adoradas por muitos Brasil afora. Uma dissertação de mestrado da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), entretanto, aponta que essas delícias consumidas em todo o país podem ser foco de alto índice de contaminação. No estudo, que avaliou 44 amostras do produto vendido na Região Metropolitana da capital paulista, verificou-se que junto à carne havia desde pelos de rato e restos de insetos até bactérias causadoras de diarreia. A pesquisa serve como alerta sobre a qualidade da carne de sol e da carne seca consumidas em todas as regiões.
Segundo a autora do estudo, a médica veterinária Tatiana Almeida Mennucci, a maior parte dos problemas relacionados à carne de sol e à carne seca é causada por manipulação e armazenamento incorretos. ;Como a carne de sol é produzida artesanalmente, não existem normas oficiais para a sua elaboração e controles de qualidade e segurança;, afirma a pesquisadora. Ela conta que, por se tratar de um alimento de origem animal, ele merece os mesmos cuidados da carne comum, o que nem sempre acontece.
Após visitar diversas casas de produtos típicos do Norte e do Nordeste do país, a pesquisadora coletou amostras e enviou para análise microbiológica no Laboratório de Microscopia Eletrônica do Instituto Adolfo Lutz. ;Houve presença significativa de contaminantes proibidos pela legislação, como insetos mortos, fragmentos e larvas de insetos e pelos de roedores;, relata a médica veterinária. ;Também foram encontrados ácaros, bárbulas (filamentos das penas de aves), fungos e pedaços de ossos, madeira e plástico;, afirma. Segundo o estudo, pelo menos 90% das amostras apresentavam algum tipo de contaminação.
Outro problema apontado pela pesquisa foi a contaminação por bactérias. A análise da Universidade de São Paulo apontou que metade das amostras possuíam algum tipo de contaminação do gênero. ;Verificou-se contaminação por Salmonella spp, Escherichia coli e Staphylococcus aureus, todas associadas a quadros de diarreia em seres humanos;, aponta Tatiana. ;Os maiores riscos à saúde são causados pela Staphylococcus aureus, cuja multiplicação no produto salgado in natura propicia a produção de uma toxina nociva, que não é eliminada quando o produto é submetido a processo térmico;, alerta.
Higiene
A manipulação da carne pelos vendedores também foi outro problema detectado. Segundo Tatiana Almeida, muitos estabelecimentos não apresentavam condições adequadas de higiene. Foram comuns, por exemplo, casos em que a pessoa que manipula a carne utilizava adornos como relógios e pulseiras. ;O contato com diversos tipos de alimentos e produtos faz com que esses objetos acumulem sujeira, que também poderá ser um veículo de contaminação cruzada;, explica a médica veterinária.
Para ela, a solução para o problema passa pela fiscalização. ;As entidades fiscalizadoras devem exigir a presença de lavatórios para higienização das mãos nesses locais, além de maior proteção dos alimentos que, de preferência, devem ser mantidos sob refrigeração;, aponta Tatiana. Ela sugere também que sejam oferecidos cursos de treinamento para as pessoas que manipulam esse tipo de alimento, ;para que possam lidar com os alimentos de forma adequada, evitando riscos para a saúde;.
Apesar de a pesquisa ter sido realizada em São Paulo, ela serve de alerta para a qualidade da carne de sol consumida no Distrito Federal. O casal Osiel Simão de Sousa, 70 anos, e Eurides Campos de Sousa, 62, divide as tarefas na hora de preparar carne de sol sem correr riscos. Ele fica atento na hora da compra e a esposa, cozinheira de mão cheia, não dispensa cuidados durante a preparação do prato. ;Na hora de comprar, fico de olho na coloração da carne, se ela está bem vermelhinha, se não tem manchas esbranquiçadas nem azuladas;, comenta Osiel, que só compra em casas especializadas em que já conhece a origem do produto.
Segundo ele, o problema é que muitos açougueiros utilizam produtos impróprios para o consumo para produzir o charque. ;Tem muito dono de açougue que, para evitar prejuízos, usa carne vencida para fazer carne de sol;, conta. Na hora do preparo, a esposa não deixa de limpar o alimento e cozinhar bastante. ;Eu pico em pedaços menores e esfrego sob a água várias vezes, depois cozinho e frito até ela ficar no ponto ;, descreve Eurides Campos.
Cuidados
Antônio Gomes abriu há poucos meses um açougue em Ceilândia e, ao contrário de muitas casas de produtos nordestinos na região, que conservam a carne de sol exposta em estufas feitas de tela, ele não as deixa fora do freezer. ;Para fazer a carne de sol, eu uso carne nova, igual à que é vendida para os clientes. Acho errada essa história de utilizar carne velha, sem falar que é contra a lei;, comenta o açougueiro.
De acordo com Maria Cecília Brito, diretora da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a responsabilidade pela fiscalização dos estabelecimentos é descentralizada. para os órgãos de Vigilância Sanitária dos estados e do DF. Ela explica que, caso o consumidor encontre algum estabelecimento descumprindo alguma norma, deve entrar em contato com os órgãos de vigilância sanitária de sua localidade. ;Alimentos com prazo de validade vencido ou armazenados de forma inadequada devem ser comunicados ao serviço de vigilância sanitária. Além disso, a Anvisa também dispõe de um canal de comunicação direto com a população, que é o telefone 0800-6429782;, conclui.
Íntegra da entrevista
1. De que forma a Anvisa atua na fiscalização na área de alimentação?
Seguindo os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), as ações fiscalização vigilância sanitária na área de alimentos são descentralizadas. Isso significa dizer que os órgãos de Vigilância Sanitária dos estados e do Distrito Federal realizam ações fiscais como inspeção sanitária em estabelecimentos comerciais alimentares e análise fiscal de alimentos expostos ao consumo humano. O objetivo é verificar se as condições sanitárias das indústrias e dos alimentos estão em conformidade com os regulamentos legais e não acarretam riscos à saúde da população que deles se utilizam.
2. A vigilância sanitária pode punir uma empresa que burlar a legislação? Que tipo de punição pode ser aplicada?
Quando são identificadas irregularidades sanitárias nos alimentos, os órgãos competentes (vigilâncias sanitárias locais) adotam, de forma autônoma, as medidas legais pertinentes para prevenir possíveis danos à saúde da população e impedir a circulação do produto ou interromper o processo de fabricação. Dependendo do risco envolvido, a Anvisa pode adotar medidas de intervenção em âmbito nacional.
Conforme dispõe o artigo 12 da Lei 6.437/1977, as infrações sanitárias devem ser apuradas em processo administrativo próprio, iniciado com a lavratura de auto de infração, observados o rito e prazos estabelecidos nesta Lei.
Segundo disposto no artigo 2: "sem prejuízo das sanções de natureza civil ou penal cabíveis, as infrações sanitárias serão punidas, alternativa ou cumulativamente, com as penalidades de: advertência; multa; apreensão de produto; inutilização de produto; interdição de produto; suspensão de vendas e/ou fabricação de produto; cancelamento de registro de produto; interdição parcial ou total do estabelecimento; proibição de propaganda; cancelamento de autorização para funcionamento de empresa e cancelamento do alvará de licenciamento de estabelecimento".
3. Quando identificadas irregularidades, quem a população pode procurar pra fazer uma denúncia?
Os consumidores que notarem qualquer tipo de irregularidade, como alimentos com prazo de validade vencido ou armazenados de forma inadequada, devem comunicar o serviço de vigilância sanitária de sua localidade. A Anvisa também dispõe de um canal de comunicação direto com a população que é telefone 0800-6429782.