Os primeiros casos de epilepsia foram registrados no Egito antigo e passam de quatro mil anos. Até que o grego Hipócrates de Cós, considerado o pai da medicina, esclarecesse que o transtorno ocorria no cérebro, o problema era associado a manifestações sagradas ou diabólicas. Hoje, cerca de 80% dos pacientes podem controlar a epilepsia com medicamentos. Quando isso ocorre, é possível estudar, trabalhar e levar a vida sem grandes limitações. Os outros 20% conseguem amenizar as crises com procedimentos cirúrgicos. No entanto, apesar dos avanços no diagnóstico e no tratamento, a doença ainda é fortemente marcada por preconceito e desinformação, barreiras que se tornaram grandes desafios para especialistas e a considerável parcela da população que lida com o problema.
Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) revelam que a epilepsia atinge pelo menos 50 milhões de pessoas no mundo. Os países em desenvolvimento concentram 90% desse contingente, devido à vulnerabilidade a patologias que causam infecções do sistema nervoso central, como meningite, e complicações vasculares decorrentes do envelhecimento desassistido da população idosa. Pelo menos 3 milhões de brasileiros são vítimas do transtorno. Porém, o número pode ser ainda maior. Assustados com o diagnóstico ou com medo de confirmá-lo, muitos pacientes se escondem e vivem à sombra do estigma da doença.
O neurologista Ricardo Teixeira explica que o cérebro funciona por impulsos elétricos, como se fosse uma bateria de automóvel. Nos pacientes com epilepsia, essa unidade não funciona de forma organizada, ocorrendo falhas que se assemelham a curto-circuitos. ;A epilepsia não é contagiosa. Ela é uma anomalia nas funções cerebrais que afeta indivíduos de todas as idades, raças e classes sociais e indica que algo não está em perfeita sintonia no cérebro. É triste perceber que, em pleno século 21, muita gente pensa que pode contrair a doença ou, pior ainda, que durante a crise, o paciente está com o demônio no corpo;, lamenta o médico.
Causas
Lesões na cabeça, infecções cerebrais, falta de oxigênio no cérebro e abuso de drogas e álcool são fatores relevantes que desencadeiam a epilepsia. Dias, semanas ou anos podem transcorrer entre a ocorrência de uma lesão e a primeira crise. Na maioria dos casos, porém, a causa pode ser genética ou mesmo de origem desconhecida, pois o cérebro ainda é um grande mistério para a ciência. O local e a extensão da falha nos impulsos elétricos determinam o tipo de crise epiléptica, que pode ser parcial ; quando ocorre em um uma região específica, se propagando ou não para o resto do cérebro ; ou generalizada ; quando acomete todo o órgão. ;Nas parciais, a pessoa aparenta estar confusa, fala sem coerência, saliva em excesso, tem distorções auditivas, perceptivas ou visuais. Nas generalizadas, o indivíduo tem convulsão, perde a consciência, sofre alterações motoras, com movimentos de flexão e extensão dos músculos;, esclarece o neurologista.
Alguns pacientes têm sensação de mal-estar gástrico, dormência no corpo, sonolência, escutam sons estranhos ou sentem odores desagradáveis antes da crise. Para a maioria, depois do episódio, o cansaço toma conta do corpo. Muitos não lembram de absolutamente nada que aconteceu durante o mal súbito, ainda que tenham se debatido e permanecido de olhos abertos. ;É comum que apresentem cefaleia, sensibilidade à luz, confusão mental, sonolência, irritação e tristeza depois de recobrarem a consciência. O cérebro é tomado por uma hiperatividade e leva algum tempo para se estabilizar;, diz Teixeira. O especialista frisa que é fundamental que os pacientes busquem o tratamento o mais cedo possível, porque, quando não tratada, a epilepsia pode levar à morte.
A agente de turismo Leatriz Alves Fortaleza, 39 anos, sofreu a primeira crise epiléptica quando tinha 6 meses. A segunda ocorreu meia década depois, quando ela já frequentava a escola. ;Foi quando passei a sentir o peso do preconceito. De lá para cá, tenho crises constantes, embora tome medicamentos. Meu caso é genético e o problema é desencadeado em uma porção muito interna do cérebro. Os médicos estudam uma cirurgia;, explica.
Leatriz tenta não se abater. ;Casei, tive uma filha linda que não tem a doença, mas não consigo trabalhar. Ninguém quer empregar uma pessoa com epilepsia. Busquei apoio psicológico para suportar os revezes trazidos pelo estigma. Cuido das plantas e procuro me manter calma, pois a ansiedade e o nervosismo desencadeiam minhas crises;, observa.
Para o neurologista da Universidade de Campinas (Unicamp) Fernando Cendes, o estigma é milenar, ocorre tanto em países desenvolvidos quanto nas nações em desenvolvimento e é levado adiante inclusive pela parcela supostamente esclarecida e com acesso à informação. ;O Brasil é vanguarda em pesquisa, tem centros de excelência de diagnóstico e tratamento. Infelizmente, não temos estrutura para atender todos os pacientes;, pondera.
Segundo ele, também é importante que médicos socorristas e clínicos gerais estejam mais atentos à epilepsia. ;Quando os neurologistas têm possibilidade de diagnosticar precocemente, as chances do paciente responder bem ao tratamento, ou seja, de cessar ou controlar as crises, são muito boas. Já cheguei a atender pacientes com quatro décadas de doença não controlada. São 40 anos de sofrimento. Imagina o quanto essa pessoa perdeu de vida. Mas tenho também pacientes que levam uma vida normal;, pondera.
; Palavra de especialista
Informação faz bem
A pessoa com epilepsia ainda encontra grandes dificuldades para vencer o preconceito e se inserir na sociedade. Empresas fecham as portas e não contratam. O estigma é mais forte que o bom senso. Estudar também é difícil. Colegas e até professores ainda creem que durante a crise a pessoa está possuída pelo demônio ou que a epilepsia é contagiosa. Tenho trabalhado a questão da informação em escolas e escuto relatos impressionantes, que demonstram claramente que o conhecimento da população sobre a doença não condiz com os avanços em tratamento e diagnóstico. Para conscientizar, é preciso capacitar profissionais de saúde, agentes comunitários e professores a serem multiplicadores de informação. Além disso, o paciente tem que sair da condição de vítima e lutar pelo melhor entendimento da sociedade.
Paula Fernandes é presidente da Assistência à Saúde de Pacientes com Epilepsia (Aspe)