O retrato da criatura desengonçada, abrutalhada e de inteligência curta do homem de Neandertal (1)que sempre marcou nosso imaginário caiu por terra com um trabalho publicado na revista especializada Proceedings of the National Academy of Sciences (Pnas). Sim, o Homo sapiens era muito mais esperto, o que garantiu a supremacia da espécie. Porém, isso não significa que os ;primos; distantes do homem moderno eram uns bobalhões, como a ciência sustentou. E a prova disso está justamente na aparência dos neandertais. Eles usavam bijuterias e maquiagem, o que sugere, de acordo com os autores da pesquisa, um sistema complexo de organização social.
Adornar o corpo com pinturas não era apenas uma questão de vaidade. Nas sociedades primitivas, os ornamentos tinham também uma função ritualística ; daí a conclusão de que os neandertais eram mais sofisticados do que se imaginava. As evidências que levaram os pesquisadores a tirar essa conclusão foram encontradas em dois sítios arqueológicos de Múrcia, no sudeste espanhol: a Cueva de los Aviones e a Cueva Antón. Nas cavernas, eles resgataram conchas perfuradas e com resíduos de tinturas amarelas e vermelhas, datadas de 50 mil anos.
Para o principal autor do estudo, o português João Zilhão, da Universidade de Bristol, no Reino Unido, essa era a prova que faltava para refutar a argumentação de cientistas de que os neandertais, ao produzirem objetos como joias e outros artefatos utilitários ou para adorno corporal, estavam meramente imitando os homens modernos. ;Nesse contexto, a presença de ornamentos feitos de dentes de animais, como os encontrados no Chatelperronense francês (cultura da época paleolítica), tem sido amplamente explicada como uma aculturação ou uma ;imitação sem entendimento; do Homo sapiens, por parte dos neandertais;, diz Zilhão, no estudo.
Até que poderia ser, pois as duas espécies chegaram a conviver, e os homens da pedra poderiam ter somente reproduzido o que viram, mesmo sem saber para que servia. Algo que um macaco, por exemplo, é capaz fazer. Porém, um detalhe provado pelos testes de carbono feitos nas peças desmente a teoria: as conchas foram pintadas 10 mil anos antes do aparecimento do Homo sapiens na Península Ibérica.
Ouro de tolo
Incansável estudioso do Homo neanderthalensis, o português João Zilhão afirma que outros indícios comprovam que a espécie usava os pigmentos para pintar o corpo e não apenas na ornamentação de objetos ; o que, por si só, já seria um grande feito, visto que até agora não havia sido encontrado nenhum artefato colorido por eles. No interior de três conchas, descobertas intactas, havia resíduos de uma tintura composta pelo mineral vermelho lepidocrocita, misturado com partículas de coral, dolomita, hematita e pirita (também chamada de ;ouro de tolo;, por causa da coloração dourada).
Segundo o pesquisador, as conchas não foram somente pintadas, mas serviram de recipiente para colocar a pintura, que posteriormente cobriria o corpo dos neandertais. Zilhão explica o porquê: ;O fato de não haver resíduos de minerais de ferro nos utensílios de pedra exclui a utilização desses minerais como matéria-prima para fabricação de mastiques (resina) ou colas para acabamentos de pontas de sílex;, disse, em entrevista ao Correio. Caso a mistura fosse feita para pintar os objetos, haveria vestígio da tinta nos mesmos.
De acordo com ele, outros diversos fatores corroboram a tese: um dos minerais encontrados, a natrojarosite não tem outra utilização conhecida a não ser a pintura facial; as conchas de Spondylus são utilizadas com fins rituais ou de ornamentação em muitas culturas pré-históricas de todo o mundo, e, conforme afirma o pesquisador, ;não faz sentido que, para tais tarefas, se recorra a recipientes raros, recolhidos em praias situadas a quilômetros do local de trabalho, em vez de a recipientes ; de osso ou de madeira ; feitos a partir de materiais existentes na própria jazida ou suas imediações;.
Além disso, ele argumenta que a adição de partículas pretas brilhantes de hematite e pirite finamente moídas ao resíduo de massa pigmentosa de lepidocrocite vermelha seria totalmente desnecessária se a ideia fosse apenas preparar resina ou cola. ;E a quantidade (menos de 5cm; de resina ou cola) que se pode preparar ou armazenar numa concha tão pequena é insuficiente para levar a cabo tarefas rotineiras de acabamento ou similares;, completa Zilhão.
O pesquisador diz que as evidências coletadas nos sítios arqueológicos de Múrcia removem as últimas nuvens de incerteza a respeito da modernidade e do comportamento cognitivo dos últimos neandertais e, por consequência, ;mostram que não há mais razão para questionar que eram eles os autores dos artefatos simbólicos da cultura chatelperronense;. Zilhão afirma que, quando consideramos a natureza do intercâmbio cultural e genético ocorrido entre os neandertais e os humanos modernos na época do contato na Europa, devemos reconhecer que os níveis de conhecimento cultural eram iguais em ambos os lados.
Cérebro
Coordenadora do curso de graduação de arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a arqueóloga Ana Catarina Ramos concorda com Zilhão. ;No processo evolutivo, costumamos associar a capacidade intelectual ao tamanho do cérebro. Conforme o órgão crescia, aumentava a capacidade de desenvolver atividades mais elaboradas. E o neandertal tinha um cérebro do tamanho do nosso, com cerca de 1,5 mil centímetros cúbicos;, diz. ;É de se esperar que tivesse uma capacidade de realização cultural tão grande quanto o cérebro permitia;, acredita.
Ela explica que, antes de entrar em contato com o Homo sapiens, o homem de Neandertal já fazia sepultamentos com flores, o que indica uma boa complexidade social. Também se preocupava com o grupo, pois aceitava indivíduos doentes e com partes do corpo extirpadas, um sinal de compreensão e solidariedade. A descoberta de que pintavam o corpo, segundo a professora, é o indício mais forte de que a cultura dos neandertais vem sendo subestimada. ;Em todas as sociedades, a pintura cultural é sinal de ritualização, de uma estrutura social muito bem elaborada;, diz.
Para ela, a descoberta de Zilhão pode ajudar a ciência a desvendar outros mistérios que rondam a história do homem de Neandertal. Ainda hoje, por exemplo, não se sabe por que ele desapareceu da face da Terra. Mas, até lá, avalia, ainda será necessária muita pesquisa.
1 - Outra espécie
Os autênticos homens da pedra viveram na Europa e na Ásia durante 200 mil anos e desapareceram no Paleolítico Médio, há cerca de 30 mil anos. Inicialmente, achava-se que eram uma subespécie e, por isso, eram chamados Homo sapiens neanderthalensis. Hoje, porém, sabe-se que formavam uma espécie diferente da nossa. O cérebro dos neandertais era 10% mais volumoso que o do homem moderno. Eles mediam cerca de 1,65m e eram bastante musculosos.
; Entrevista
1) Por que o senhor acredita que os pigmentos eram usados para pintura corporal, e não para outros fins? O fato de não haver ferramentas com a coloração nos sítios arqueológicos explica completamente o fato?
Há vários argumentos:
a) o fato de não haver resíduos de minerais de ferro nos utensílios de pedra exclui utilização desses minerais como matéria-prima para a fabricação de mastiques ou colas para encabamento de pontas ou facas de sílex;
b) um desses minerais, a natrojarosite, não tem outra utilização conhecida que não seja em pintura facial;
c) a adição de partículas negras brilhantes de hematite e pirite, finamente moídas, ao resíduo de massa pigmentosa de lepidocrocite vermelha encontrado numa valva de Spondylus não tem qualquer sentido do ponto de vista tecnológico; dito de outra maneira, essa adição é totalmente desnecessária se a ideia é preparar um mastique ou cola;
d) a quantidade (menos de 5 centímetros cúbicos) de mastique ou cola que se pode preparar ou armazenar numa concha tão pequena é insuficiente para levar a cabo tarefas rotineiras de encabamento ou similares;
e) não faz sentido que, para tais tarefas, se recorra a recipientes raros, recolhidos em praias situadas a kilómetros do local de trabalho, em vez de a recipientes (de osso ou de madeira) feitos a partir de materiais existentes na própria jazida ou suas imediações;
f) as conchas de Spondylus são utilizadas com fins rituais ou de ornamentação em muitas culturas pré-históricas do mundo inteiro;
g) achados como os que apresentamos no nosso artigo seriam interpretados de forma rotineira e incontroversa como jóias ou pintura, em todo o caso ligados à ornamentação pessoal, em qualquer contexto arqueológico ligado ao homem moderno; no nosso caso estão associadas ao homem de Neandertal, mas isso não justifica que sejam interpretadas de maneira diferente.
2) Nunca antes foram descobertos artefatos similares aos que a sua equipe encontrou?
Existem em grutas de França dentes de animais perfurados usados como elementos de colar, para pendurar à volta do pescoço, em jazidas (por exemplo, a Grotte du Renne, em Arcy-sur-Cure) habitadas pelo homem de Neandertal. No entanto, essas jazidas datam da época do contacto com o homem moderno, pelo que a interpretação dos elementos de adorno nelas achados tem sido controversa, havendo quem defenda que na realidade se trataria de objectos fabricados pelo homem moderno e cuja associação aparente com os neandertais seria fortuita, acidental ou espúria. A singularidade dos achados de Murcia reside em que datam de um período anterior em 10.000 anos à chegada do homem moderno à Europa, pelo que a sua associação com os neandertais é de todo inquestionável. Além disso, os achados de Murcia representam a mais antiga prova (seja enm contextos neandertais seja em contextos ligados ao homem moderno) da preparação de receitas colorantes complexas, envolvendo minerais de diferentes propriedades e proveniências.
3) O que muda agora na arqueologia a descoberta de que o Homem de Neandertal tinha uma estrutura social mais complexa do que imaginávamos?
A conclusão que se impõe é que as diferenças entre o Homem de Neandertal e o homem moderno são de natureza puramente anatómica, do mesmo nível das que existem hoje em dia entre populações de "raças" humanas diferentes. Portanto, do ponto de vista da inteligência, capacidades cognitivas e organização social, as analogias para a interpretação dos neandertais devem ser procuradas entre os povos caçadores-recolectores documentados pela etnografia ou pela arqueologia, não na socio-ecologia dos primatas superiores.
4) Por que ainda vigora no senso comum a ideia de que o Homem de Neandertal era muito mais primitivo que o Homo Sapiens?
É uma herança vitoriana, um resíduo da época em que a evolução era concebida como progresso e em que qualquer fóssil humano, ao ser antigo, tinha necessariamente de ser também "primitivo". Foi uma ideia que passou para a cultura popular oitocentista e que também condicionou em boa medida o pensamento científico das últimas décadas.
5) O senhor vai dar prosseguimento ao estudo?
Sim, há aspectos destes achados que estão a ser objeto de investigação adicional, e há mais jazidas neandertais em Portugal e em Espanha onde também foram encontrados objetos de origem marinha, incluindo conchas perfuradas. A antiguidade dessas outras jazidas, porém, necessita de ser validada, coisa em que neste momento estamos a trabalhar.