Durante anos, Luiza Polessa, 57 anos, esteve do outro lado. Era quem escutava, aconselhava e compartilhava as transformações de mulheres com câncer. Até que um dia a psicóloga se viu preocupada com a reação da radiologista durante o exame de mamografia. Algo estava errado. O mesmo sofrimento, a mesma espera por um resultado, a ansiedade pelo tratamento, a esperança da cura ; todas as fases que ela conhecia bem estavam sendo sentidas na pele. O diagnóstico era câncer de mama. Por sorte, o tumor era ameno, e o tratamento foi feito com radioterapia. A experiência de dor e a busca pela superação foram relatadas no livro Entre Nós: depoimentos que revelam o universo de quem convive com câncer, lançado pela Editora BestSeller.
Hoje, sete anos depois, ela continua a atender pacientes no Rio de Janeiro. Apesar de já ter voltado à rotina que tinha antes da doença, não se esquece da jornada que passou. A consciência de estar viva não deixa. Luiza incentiva seus pacientes a viverem profundamente o caminho para vencer esse mal que atinge milhares de brasileiros. ;Não é incomum ouvir as pessoas falarem que depois do câncer elas se tornaram melhores;, revela. A psicóloga conversou com o Correio e contou que, para enfrentar a batalha, é preciso muito apoio e ajuda de quem está mais próximo.
Como foi ter que conviver com o câncer depois de aconselhar tantas mulheres sobre como lidar com ele?
Eu segui os conselhos que eu costumava dar, principalmente o de pedir ajuda. É um momento em que a vida muda muito, e a nossa rotina é interrompida de uma forma muito brusca. Eu passei a me ocupar integramente de exames necessários para diagnósticos, para o tratamento e por muitos procedimentos dolorosos, foi um processo exaustivo. E, sim, quem sofre com o câncer tem que ter muita ajuda, buscar interagir com os outros da melhor forma. A colaboração do paciente é fundamental para o tratamento fluir, para as coisas ficarem mais leves e até mesmo para os familiares não se desgastarem tanto.
A primeira reação à notícia é sempre sofrida?
Sempre. Eu acho importante fazer o contato mais profundo possível com os sentimentos que estamos passando naquele momento. Não negá-los, não subestimá-los, porque é nesse contato que vai vir a possibilidade de transformação. A carga afetiva desse sentimental é fundamental. Temos que viver os medos, a ansiedade, a tristeza de pensar na possibilidade do fim, da morte mesmo. Aquele olhar para trajetória da sua vida toda, o que se construiu, o que se fez. É um momento importantíssimo na vida da pessoa. Quem não tem esse costume de olhar para si deve procurar uma terapia, porque é essencial se descobrir nessa fase.
Por que as pessoas tendem a repensar a vida nesses momentos?
Desde do início da doença, eu pensava: ;será que a bagagem que eu tenho é suficiente para me sustentar nesse momento?;. Esse olhar para trás foi muito nesse sentido. E foi muito gratificante ver que eu construí vínculos fortes. Fui muito bem assistida afetivamente pela minha família, tive muitas demonstrações de carinho, de afeto e, mesmo assim, vi que precisava corrigir algumas coisas. Quanto maior a bagagem, mais fácil é atravessar esse momento de doença. O sentimento de fragilidade é muito grande. Você entra nessa trajetória e não sabe como vai sair.
Para quem não tem esse apoio moral e não se sente amparado, qual é o seu conselho?
Comecem a formar essa bagagem, ainda dá tempo. Mesmo que esse tempo seja o percurso da própria doença. Muitas pessoas não têm apoio. Eu atendo muita mãe cujos filhos ainda esperam que ela cuide da casa e coloque a comida na mesa. Muitas vezes, ela tem que cuidar e deveria estar sendo cuidada. Tem muito sofrimento nesse sentido, da pessoa ver qual o papel que ela ocupava até o momento do adoecimento dela. Geralmente é o papel de quem faz, que dá, de quem prove. Quando ela sai disso, as pessoas não sabem como cuidar dela.
O relacionamento amoroso da mulher também fica afetado?
Isso é natural, principalmente quando há mutilação. É um processo longo, e a mulher fica com a sensibilidade do toque, ela mesmo tem dificuldade de se olhar. Na relação conjugal, eu vejo muita união e solidariedade. Em geral, os homens são participativos e compreensivos. Mas essa identidade corporal fica completamente destroçada. Quando a mulher passa pela quimioterapia ou pela radioterapia, a libido fica muito reduzida. A proximidade emocional pode ficar maior, é claro, mas principalmente, quando ela já existe. Com os dois ali, juntos, descobrindo a sexualidade numa nova fase, tudo pode ser sido visto com beleza, embora tenha dor e a vergonha.
Qual a melhor forma de encarar a doença?
Tem que ter uma postura otimista, mas não é um otimismo irracional, ele é lúcido. Eu vou viver isso, enfrentar tudo, contar com a ajuda das pessoas, ver o que cada uma pode me oferecer, me preparar e ler tudo em relação ao câncer. Se necessário, trocar as experiências com grupos de apoio ou fazer uma busca espiritual. Existem inúmeras e intensas possibilidades de encontro. Não é incomum ouvir as pessoas falarem que, depois do câncer, elas se tornaram melhores.
O encontro com a morte faz as pessoas repensarem na vida? Como foi isso para você?
A minha questão foi: o que eu posso fazer, viver, oferecer para as pessoas que estão à minha volta? Como a minha vida pode ser mais aproveitada? Eu fiquei mais seletiva, atenta, entregue. O grau de profundidade aumenta porque sei que já vivi a possibilidade da morte muito de perto. Saber que eu não poderia fazer as coisas que estou fazendo pode mudar a perspectiva. Às vezes eu não consigo dar conta dos compromissos e tento retomar esse equilibro o mais rápido possível. A rotina é como um rolo compressor, puxa mesmo, mas temos que ter um cuidado grande para não perder essa consciência que nós adquirimos com a doença.
Depois de todo o tratamento, você oficializou sua união de 26 anos. Era um coisa que você sempre quis?
Eu nunca quis, mas meu marido queria muito. Nós morávamos juntos há muito tempo, mas quando eu adoeci ele teve algumas dificuldades de ordem prática, não tinha liberação para acompanhar todos os procedimentos, não podia ficar longe do trabalho. E ele me falava: ;Está vendo? Se nós fossemos casados, não estaria acontecendo isso;. Teve um episódio que me marcou muito. Ele me disse: ;Se você morrer, Luiza, eu vou ser solteiro, mas na verdade vou ser viúvo;. Eu senti naquele momento que era a hora. Resolvemos nos casar e foi lindo.
Qual é a grande lição do câncer?
Uma grande lição é a própria vida, como a vida vale a pena ser vivida na forma de expressão que ela tem, na dor, na alegria, nas conquistas, nos desafios. Outra coisa que senti muito foi o que fortalecer os vínculos afetivos pode resolver, ou pelo menos minimizar, os problemas. Então a lição é essa, de resolver a vida e apostar no amor e na solidariedade.
"Temos que viver os medos, a ansiedade, a tristeza de pensar na possibilidade do fim, da morte mesmo"
"Na relação conjugal, vejo muita solidariedade. Em geral, os homens são participativos e compreensivos. Mas a identidade corporal fica completamente destroçada para a mulher"
"Tem que ter uma postura otimista, mas não é um otimismo irracional, ele é lúcido. Eu vou viver isso, enfrentar tudo, contar com as pessoas. Se necessário, buscar auxílio espiritual"
Ouça um trecho da entrevista com a psicóloga Luíza Polessa: