Não se engane com a preguiça, ela pouco tem a ver com a moleza ou a momentânea falta de vontade de fazer algo. Ela é muito mais forte e um de seus poderes é deixar a vida vazia, sem sentido. Por isso, dos sete pecados capitais, talvez ela seja a mais dolorosa, sofrida e destrutiva. A acedia, como também é conhecida, é o enfraquecimento da alma, que nos afasta da realidade e de nós mesmos. Na quarta reportagem desta série especial, você vai aprender como esse sentimento está ligado à nossa própria formação e aos problemas do mundo moderno, além de descobrir que também é possível aprender com ele.
[SAIBAMAIS]"O pecado da preguiça é uma letargia que aos poucos suga a vida ou deixa um vazio no espírito. É caracterizado pela falta de paixão, de vontade e de motivação que nos leva à melancolia, à apatia e à indiferença", explica ao Correio Claude Barbre, psicólogo e professor da Escola de Psicologia Profissional de Chicago. Na Idade Média, ter esse sentimento de não querer mais viver era um verdadeiro suplício para os religiosos. Ninguém conseguia entender como era possível fazer uma recusa tão amarga e avassaladora de aproveitar a vida.
Nas escrituras cristãs, esse pecado é visto como um vício primário, mais perigoso e debilitador do que o orgulho ou a inveja. A preguiça era considerada um tipo de exaustão do espírito, uma distração da alma, que não é apenas uma perda de energia, mas um transtorno. Segundo o especialista americano, não podemos classificá-la como uma depressão clínica, mas podemos dizer que é uma depressão espiritual, e esse peso na alma é sinal de perigo. "Nos tempos antigos, a preguiça não era apenas um pecado, mas era classificada como uma onda de 'maus pensamentos' que influenciam uma visão negativa de si mesmo, dos outros e da realidade. Esse fenômeno não é a nossa visão moderna de doença que geralmente inclui algum determinante orgânico para que isso aconteça, é algo mais", afirma Barbre.
Quando esse pecado chega, ele pode ser avassalador. Nos sentimos perdidos em um enorme vazio e poucas coisas fazem sentido ao atingirmos a depressão espiritual. Do ponto de vista psicológico, a acedia geralmente vem acompanhada de desordens narcisistas em que faltam para a pessoa fontes internas de conforto e consolo para sua existência. "É uma turbulência da mente, um distúrbio de si mesmo. Também pode se manifestar hoje em dia nas nossas questões contemporâneas e fissuras interpessoais", comenta o psicólogo americano.
Infância
A palavra acedia deriva do grego acknos, que quer dizer "não se importar com alguma coisa". A amargura em relação à vida pode acontecer todos os dias no mundo agitado em que vivemos. Sua causa está ligada, principalmente, ao trauma e à perda e pode ter origem na infância. Acontecimentos dolorosos e com "essa falta de amor" podem influenciar nossa vida adulta. O psicanalista americano Leonard Shingold chama essas rupturas de pequenos "assassinatos da alma".
Quando a criança se desenvolve, a habilidade de se identificar com uma realidade compartilhada com os outros e de poder experimentar sua criatividade está profundamente conectada à forma como é tratada e aos cuidados que recebe nos primeiros anos de vida. "Muitos indivíduos passam para a vida adulta com um vazio espiritual que reflete o ambiente difícil que eles podem ter tido na infância", afirma Barbre.
A psicóloga britânica Anne McGuire diz no livro The seven deadly sins - The dark companions of the soul (Os sete pecados capitais - As companhias obscuras da alma) que a repetição constante de mantras como "eu não vou conseguir", "eu não sou boa o bastante" ou "eu não sou inteligente" retrata a presença de uma sombra antagonista. O indivíduo acaba alimentando um ódio por si mesmo e, depois de algum tempo, pode acabar se rejeitando completamente. É por isso que a preguiça é vista como a raiz de todas as outras tentações da mente e do corpo. "A autorrejeição pode levar as pessoas a terem problemas de saúde de todo tipo. É importante o bem-estar tanto da mente quanto do corpo", sugere Barbre.
Alerta
A preguiça, porém, também pode ser positiva. Ela pode funcionar como um alerta de que precisamos reanimar nossa capacidade de amar. Está aí a principal diferença entre esse pecado e a depressão clínica. "De acordo com os primeiros ascéticos, isso queria dizer que, quando não tínhamos nada para nos fazer levantar, éramos jogados de volta à nossa essência. E com isso, uma nova consciência poderia surgir e falar conosco quando todos os limites desapareciam. Essa perda pode nos fazer encontrar uma nova motivação e um sentido mais profundo para a vida", diz o psicólogo.
Dessa forma, se considerarmos a preguiça uma depressão da alma, ela pode ser um sinal de perigo ou de oportunidade. "Do ponto de vista clínico, nós vemos a acedia não só como um termo descritivo para perdas internas e externas que desperta características depressivas, mas também como um sinal para rever essa perda de amor por si mesmo e pelos outros. Isso pode levar ao redescobrimento. A preguiça pode sugerir esse tipo de paralisia moderna", garante.
Para aqueles que sofrem com a preguiça ou têm alguma tendência a sofrer desse mal, a dica é lutar contra ela, reconhecendo o sinal que ela nos dá quando surge e procurando rever as prioridades na vida. "Nesse sentido, nós precisamos ajudar uma pessoa a reaprender sua humanidade, transformar essa vivência de abandonar a si mesmo em um uma visão mais positiva em relação à vida", conclui Barbre.