Jornal Correio Braziliense

Ciência e Saúde

Sono descontrolado

Pacientes com narcolepsia dormem subitamente, em qualquer situação: em pé, trabalhando, dirigindo, estudando. Doença é incapacitante

Quando passou a cair no sono em pleno expediente, a recepcionista Lucília do Carmo Moraes, 33 anos, jamais desconfiou ser vítima da narcolepsia, síndrome neurológica incomum que provoca episódios repentinos de sonecas profundas por alguns minutos durante o dia ou deixa a pessoa constantemente sonolenta. Para ela, a sonolência contínua e os cochilos incontroláveis eram decorrentes da rotina desgastante de trabalho como operadora comercial em uma grande loja de departamentos, do estudo no período noturno e das tarefas e cuidados com a própria casa. ;A primeira manifestação ocorreu quando eu tinha 19 anos. Não compreendia aquele sono excessivo em plena luz do dia. Não tinha noção do que estava acontecendo, até porque passei a sofrer de outro sintoma da doença que nunca ouvira falar, que é a cataplexia. Eu não podia ficar alegre ou dar risadas que desfalecia. Não perdia os sentidos, mas meu corpo não obedecia meus comandos e eu não conseguia me mover;, relata.

Lucília sofreu por um ano até conseguir chegar ao diagnostico do distúrbio. Na escola, ela era motivo de piadas. No ambiente de trabalho, os colegas tentavam adivinhar o problema. Alguns cogitavam uma gestação, outros falavam que ela estava ;possuída;. Havia ainda o grupo que apostava que a moça era médium ou tinha problemas mentais. Em casa, ninguém entendia o que se passava. ;Meu sono vem do nada. Dura uns dois ou três minutos e eu chego a roncar. Já dormi em ônibus, no metrô e até em fila de banco. Em pé, sentada, recostada, não importa a posição. O sono vem fora de controle. Fiz uma verdadeira peregrinação por hospitais e passei pelas mãos de vários médicos, de diversas especialidades. Eles faziam exames dos pés à cabeça e falavam que eu não tinha nada;, recorda.

O diagnóstico foi feito pelo neurologista e professor da Universidade de Brasília Nonato Rodrigues. Especialista em transtornos do sono, ele explica que o estado contínuo de sonolência ou as crises incontroláveis deixam o paciente em perigo constante. O mal pode prejudicar a atenção, a concentração e o humor, além de trazer consequências individuais, sociais e econômicas graves. ;A narcolepsia é uma doença neurológica de caráter genético, que se manifesta por uma desordem nos sonos, que ficam deteriorados e perdem suas fronteiras, seus limites. O sono REM(1), mais conhecido como o dos sonhos, entra na vigília e invade o sono não REM;, observa.

O médico esclarece que o transtorno incapacita. Segundo ele, a sonolência diurna excessiva e incontrolável é o principal e mais comum sintoma da narcolepsia, mas as outras manifestações da síndrome também são constrangedoras e incompreendidas. A cataplexia, ou perda no tônus muscular, associada a emoções, geralmente agradáveis, acomete mais de 60% dos portadores do mal. ;Imagine o que é desfalecer sem perder a consciência, ficar incapaz de se mexer por cerca de dois ou três minutos. Os narcolépticos não têm as rédeas da própria vida e são vítimas de julgamentos extremamente precoceituosos;, diz. Aqueles que acumulam a cataplexia passam a reprimir sensações boas. ;São pessoas que têm dificuldades em se manter empregadas ou até para conseguir trabalho. Afinal, ninguém deseja um funcionário que dorme durante o expediente. É uma doença extremamente limitante;, lamenta.

Tormento
Geralmente, os primeiros sintomas surgem entre os 15 e 35 anos de idade. Os portadores do mal também podem ser vítimas de alucinações ao adormecer ou despertar, de sensações visuais ou auditivas de animais dentro do quarto e até de flutuação. Alguns pacientes também sentem paralisia do sono. Acordam, abrem os olhos e não conseguem se mexer. O sono noturno é muito fragmentado, com múltiplos despertares e pesadelos. Dormir à noite é um tormento para os narcolépticos. O neurofisiologista do Centro Interdepartamental para os Estudos do Sono do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo Flávio Aloé destaca que a narcolepsia é uma doença crônica e autoimune. O organismo do narcoléptico fabrica anticorpos contra células específicas da região do hipotálamo, no sistema nervoso central. ;É uma síndrome peculiar, de diagnóstico incomum. Geralmente, o paciente não consegue explicar os sintomas aos médicos e muitos profissionais nem sequer reconhecem a doença. Isso leva a pessoa a sofrer por anos sem saber o diagnóstico. Mas o potencial de respostas diante do tratamento dos sintomas é altamente positivo;, garante.

Para fechar o diagnóstico, é preciso uma investigação detalhada. Especialistas recorrem ao exame de latência múltipla de sono. Trata-se de um teste de laboratório em que o paciente é colocado para dormir cinco vezes durante o dia, a cada duas horas. Mede-se o tempo que ele leva para dormir e observa-se o intervalo que alcança o sono REM. Normalmente, esse sono vem com 90 minutos, mas, nos narcolépticos, ele chega em até 40 segundos. O tratamento depende também da higiene do sono e de medidas que melhorem todos os outros sintomas, permitindo que a pessoa tenha qualidade de vida.

Sonho destruído
Na medida do possível, Lucília tenta alcançar esse objetivo. Seu exame detectou que ela acorda mais de 70 vezes a cada hora durante o sono da noite. ;Dependo de remédios, mas hoje consigo trabalhar sem passar por tantos contratempos. Infelizmente, não consigo estudar e o sonho de fazer uma faculdade ficou para trás. É bem complicado, não posso dirigir, engravidar, fazer planos. Digo que tenho poucos motivos para sorrir e, quando dou risada, essa doença me joga no chão;, resume.

No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou recentemente uma medicação usada há 10 anos nos Estados Unidos e na Europa para o tratamento da sonolência associada à narcolepsia. A modafinila atua no sistema nervoso central, ativando regiões do cérebro responsáveis pela promoção do estado de vigília, sem interferir no sono noturno. ;É um medicamento significativamente mais seguro que seus antecessores, pois não causa os efeitos colaterais de estimulantes da classe das anfetaminas e da cafeína, como irritabilidade, irritação gástrica e aumento da pressão arterial sistêmica;, diz Alóe.

A modafinila é superior às anfetaminas porque não causa dependência e perda de efeito. Também não acarreta euforia, alteração de humor ou taquicardia, como provocam as anfetaminas, explica o especialista. ;Infelizmente, não existem políticas de saúde para reconhecimento e distribuição de medicamentos para os pacientes da narcolepsia;, conclui.


1 - Intensa atividade
Sigla em inglês para movimento rápido dos olhos, significa o pico da atividade cerebral, quando ocorrem os sonhos. O relaxamento muscular atinge o máximo e voltam a aumentar as frequências cardíaca e respiratória. O sono REM caracteriza-se por uma intensa atividade registrada no eletroencefalograma (EEG), seguida por flacidez e paralisia funcional dos músculos esqueléticos. Nessa fase, a atividade cerebral é semelhante à do estado de vigília, e as coisas que foram aprendidas durante o dia são processadas e armazenadas. O sono REM representa de 20% a 25% do tempo total de sono. É essencial para o bem-estar físico e psicológico do indivíduo.

Para saber mais

A importância do descanso

Especialistas alertam que o ser humano precisa de um mínimo de horas diárias de sono. A quantidade varia entre os indivíduos. Esse período de descanso físico e mental é essencial para que o corpo realize processos metabólicos vitais para garantir saúde e qualidade de vida. Estudos com pessoas privadas de sono (que dormem menos do que precisam) mostram que o vigor físico, a resistência a doenças, atenção, coordenação motora e muitas outras atividades são seriamente prejudicadas quando não se dorme. A curto prazo, cansaço e sonolência durante o dia, irritabilidade, alterações repentinas de humor, perda da memória de fatos recentes, comprometimento da criatividade, redução da capacidade de planejar e executar, lentidão do raciocínio, desatenção e dificuldade de concentração são sentidos por aqueles que não dormem bem. A longo prazo, ocorre a falta de vigor físico, envelhecimento precoce, diminuição do tônus muscular, comprometimento do sistema imunológico, tendência a desenvolver obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e gastrointestinais e perda crônica da memória.