A resposta para o tratamento mais eficaz de vítimas de queimaduras de terceiro grau ou pacientes portadores de graves doenças de pele pode estar em pesquisas realizadas com células-tronco embrionárias. Um estudo desenvolvido pelo cientista francês Marc Peschanski em parceria com pesquisadores espanhóis, conseguiu recriar as células da pele (queratinócitos) e reconstruir in vitro a epiderme ; camada mais superficial da pele ; técnica testada com sucesso em cobaias. Consideradas verdadeiros ;curingas; no organismo humano, pelos cientistas, as células-tronco embrionárias têm sido alvo de polêmicas em diversos setores da sociedade, devido à oposição de grupos religiosos e civis que consideram como início da vida o momento em que ocorre a concepção.
Em entrevista ao Correio, por e-mail, o cientista e coautor do estudo Gilles Lemaitre explicou que a pele desenvolvida em laboratório apresentou características completamente normais com uma obtenção pura e homogênea de queratinócitos(1). ;Os queratinócitos derivados das células-tronco embrionárias foram capazes de recriar a epiderme com todas as camadas características da fase adulta, cerca de 12 semanas depois de ter sido enxertarda em ratos imunodeficientes;, destaca.
De acordo com ele, o diferencial em relação à técnica de enxerto convencional ; feita com a própria pele do paciente (terapia celular) ; é justamente o fato de não deixá-lo exposto a problemas de saúde. ;O prazo estipulado para o cultivo da epiderme retirada de outras partes do corpo no tratamento convencional é de três semanas, em média. Dessa forma, porém, o paciente acaba correndo riscos de contrair infecções ou de ficar desidratado;, enfatiza. Segundo informou Peschanski, o principal autor do estudo, à agência France-Presse, durante três meses de observações a pele fabricada em laboratório se renovou por três vezes. ;Fizemos pele humana. Para a realização de testes em humanos, porém, é necessário que haja uma transferência de tecnologia;, destaca.
Segundo a pró-reitora de pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) Mayana Zatz, membro do Centro de Estudos do Genoma Humano, as células-tronco embrionárias são as únicas capazes de formar qualquer tipo de tecido do corpo. ;Enquanto as adultas, encontradas na medula óssea e no tecido adiposo, por exemplo, não têm esse potencial todo;, destaca. Na opinião da especialista, a recriação da epiderme traz uma resposta importante para pessoas que têm problemas de pele considerados graves. ;Um deles é a epidermólise bolhosa, doença que tem como consequência a formação de bolhas por todo o corpo e pode levar a pessoa à morte. Do ponto de vista estético pode ser útil também para aqueles que querem ter uma pele rejuvenescida;, afirma.
Dificuldades brasileiras
As pesquisas com células-tronco embrionárias já são permitidas no Brasil. Mas, de acordo com Zatz, os estudos desenvolvidos no país ainda não alcançaram o ritmo mundial. ;Temos dificuldades para importar materiais;, diz. Segundo a pesquisadora, o último estudo publicado pelos cientistas da USP comparou o potencial de diferentes células-tronco para a transformação de um músculo. ;Mostramos que células-tronco de tecido adiposo humano, injetadas em camundongos, foram capazes de regenerar os músculos e melhorar todo o quadro clínico. Agora, estamos testando o mesmo experimento com células do cordão umbilical;, explica.
Para a doutora em microbiologia e professora da Universidade de Brasília (UnB) Lenise Garcia, o feito dos franceses é importante, porém os obstáculos precisam ser lembrados. ;Em se tratando de células-tronco embrionárias, sempre existe o lado da ética, a não aceitação por todos. O Instituto Europeu de Patentes, por exemplo, rejeitou no ano passado o pedido de patente sobre técnicas para obtenção de células estaminais embrionárias apresentado por uma fundação universitária norte-americana;, diz.
Além disso, segundo a pesquisadora, a proliferação aceleradada das células-tronco embrionárias ; característica tão enfatizada pelos franceses no estudo ; é um fator a ser levado em consideração por cientistas de todo o mundo, devido à possibilidade de desenvolvimento de doenças como o câncer. ;Com relação ao Brasil, acho que ele está bem posicionado diante do mundo, em relação às pesquisas com células-tronco. Temos algumas instituições de renome bastante empenhadas no assunto;, finaliza.
Os donos da epiderme
Queratinócitos são as células mais presentes na epiderme ; cerca de 80% ; e têm como principal função produzir queratina, uma proteína fibrosa que faz, por exemplo, da epiderme uma camada protetora. Finamente ligados uns aos outros, os queratinócitos formam-se na camada mais profunda da epiderme a partir de células que se encontram sempre em divisão. Os queratinócitos são empurrados para a superfície devido à produção de novas células por baixo deles. À medida que se aproximam da superfície da pele, transformam-se em estruturas esqueléticas que pouco mais são que membranas com queratina. Milhões dessas células mortas são eliminadas por abrasão todos os dias, o que permite a renovação total da epiderme em cerca de 35 a 45 dias, o tempo entre o ;nascimento; de um queratinócito e a sua eliminação na superfície da pele.
Nos EUA, luta contra a perda da visão
A terapia com células-tronco embrionárias deu mais um passo para a fase clínica neste mês, nos Estados Unidos, depois que cientistas norte-americanos anunciaram ter solicitado ao governo a aprovação de testes em seres humanos para o tratamento de uma doença que degenera a visão. A autorização foi solicitada pela empresa Advanced Cell Technology (com sede em Massachusetts). A Advanced alega que os testes devem ser permitidos para tentar tratar 12 pacientes que correm risco de perder a visão, devido à doença de Stargardt, uma das formas mais comuns de cegueira juvenil.
O tratamento consistiria numa injeção única de células da retina derivadas de células-tronco embrionárias. Estudos realizados previamente em cobaias mostraram que esse tratamento permitiria deter a degradação da visão, sem gerar efeitos secundários, segundo Robert Lanza, cientista da Advanced Cell Technology.
O mecanismo consiste em substituir as células da retinas perdidas ; chamadas de epitélio pigmentário retinal, ou EPR ;, que possuem os fotorreceptores necessários para a visão. Os testes terapêuticos poderão começar já no início do próximo ano, se a FDA ; a agência americana de controle de medicamentos, uma espécie de Anvisa dos EUA ; der sua aprovação, explicou Lanza.
É a segunda solicitação de autorização para realizar testes clínicos com células-tronco embrionárias nos EUA. A primeira, uma terapia para reparar lesões na medula espinhal, está pendente, pelo menos até o terceiro trimestre de 2010, informou recentemente a empresa californiana Geron, autora da petição.
A doença
A doença de Stargardt é a forma mais comum de degeneração macular juvenil. Nela, ocorre a perda progressiva das células fotorreceptoras da mácula, gerando a redução da visão central, com a preservação da visão periférica. A progressão da Stargardt varia de pessoa a pessoa, podendo se agravar após os 50 anos. Quase sempre é herdada sob a forma autossômica recessiva. Ambos os pais, chamados portadores do gene, transmitem a doença, ainda que eles próprios não sejam afetados, porque têm apenas uma cópia do gene (são necessários dois genes alterados para que a doença apareça). O risco de uma criança ter Stargardt quando os pais são portadores do gene é de 25% em cada gestação.