Atire a primeira pedra quem nunca mentiu. Seja para se livrar de um compromisso chato ou de uma pessoa indesejável, a mentira é algo natural e até aceitável em nossa sociedade. Entretanto, quando se torna frequente ao ponto de prejudicar a vida de quem as conta, ela pode ser o principal sintoma de males como os transtornos factício e narcisista, a simulação e a psicose. Doenças que não são diagnosticadas com facilidade e de difícil tratamento.
Não se sabe exatamente quais as causas dos distúrbios relacionados à mentira compulsiva. Acredita-se que ela possa ter motivos sociais, como a criação e o ambiente em que a pessoa vive, além de origens genéticas, já que muitos pacientes apresentam ocorrências na família. ;Alguns pacientes vêm de famílias muito cheias de regras, em que não eram reconhecidos. Isso acaba gerando um adulto inseguro, o que facilita o desenvolvimento de vários tipos de compulsões;, avalia a psicóloga Érika Carísio.
Ela conta também que, outras vezes, a ocorrência de situações de constrangimento pode ser o ponto de partida para essas doenças. ;Por não ser aceito devido a alguma questão social, como por ser muito pobre, ou por sua origem, esse paciente acaba inventando histórias para não assumir a sua condição. Outras vezes é a lembrança de algum constrangimento que já passou que desencadeia esse quadro; explica Érika.
Independentemente da síndrome, o tratamento ; na maioria dos casos baseado na combinação de medicamentos e psicoterapia ; é longo, podendo durar a vida toda, o que exige persistência. ;Como muitas vezes os resultados demoram, o paciente acaba abandonando o tratamento, o que impossibilita o controle dos sintomas e prejudica a vida do portador;, conta o psiquiatra da Universidade de Brasília Raphael Boechat.
Pedido de atenção
O transtorno factício ocorre quando uma pessoa simula uma doença. Muitas vezes associado à carência, o objetivo não é obter algum tipo de ganho, e sim receber atenção, tanto da equipe médica quanto da família. De acordo com o psiquiatra, o transtorno atinge principalmente idosos. ;Quando estamos doentes, recebemos um carinho que remete ao que recebíamos na infância. O portador do transtorno factício não age por maldade, ele encontra na simulação de uma doença uma maneira de chamar a atenção, o que pode ser um sintoma de outros problemas mais graves, como a depressão.;
Estima-se que de 20% a 25% dos casos atendidos em hospitais sejam de doenças imaginárias, o que contribui para uma sobrecarga no sistema público de saúde. ;Muitas vezes, o paciente vai várias vezes ao médico sem que ele consiga detectar qualquer doença. Descobrir que essa pessoa tem transtorno factício pode ajudar inclusive a diminuir as filas nos ambulatórios dos hospitais;, argumenta o médico.
A mentira compulsiva também pode estar relacionada à psicose. Nessas situações, o paciente acredita nas histórias que conta, e vive esses delírios. ;Em casos mais graves, os portadores de psicose chegam a acreditar que são pessoas importantes, como, por exemplo, o presidente da República;, conta o médico.
Existem ainda casos menos graves, em que os delírios são relacionados a coisas que, embora não sejam reais, são possíveis de acontecer. Nessas situações, o diagnóstico se torna ainda mais difícil, pois verdades e mentiras se confundem. ;São coisas que poderiam ser verdade, por isso, muitas vezes, essas mentiras são sustentadas por anos, e até pela vida toda.;
Fuga
Mesmo quando a mentira é contada intencionalmente, ela pode estar ligada a alguma doença. Em quadros de síndrome de simulação, os pacientes encontram na mentira uma forma de não encarar os próprios problemas. Preferem mentir a lidar com situações difíceis, ou usam a falsidade para obter ganhos. É o caso das pessoas que mentem para ser promovidos, para justificar atrasos ou até para cometer crimes.
Contar uma pequena mentira eventualmente não caracteriza síndrome de simulação. O caso passa a merecer atenção maior quando a mentira se torna tão frequente que se tem que inventar mais mentiras para ocultar as anteriores. ;Chega-se a um ponto no qual a situação se torna tão insustentável que os pacientes são desacreditados pela família, perdem o emprego e os amigos;, explica o médico.
O hábito de mentir também pode revelar um desvio de personalidade. Para quem sofre de transtorno de personalidade narcisista, mentir faz parte da individualidade. Em geral ligado ao excesso de autoestima e ao egocentrismo, o objetivo é se exaltar, mostrar-se superior ao que se realmente é.
De todos os pacientes de males relacionados à compulsão por mentir, os que sofrem do transtorno narcisista são os que têm maior dificuldade de tratamento. ;É da índole desses pacientes mentir. Eles dificilmente reconhecem que não estão falando a verdade, e raramente admitem que precisam de tratamento;, afirma o psiquiatra. Eles só vão aos consultórios quando são obrigados. ;Em geral, quando esse paciente procura tratamento é por causa de ameaças de demissão no trabalho ou pressionado pela família, nunca de maneira espontânea;, conclui Boechat.