Mais de duas semanas após a publicação da decisão que determina a exumação do corpo de Alfredo Stroessner, a Campo da Esperança Serviços, empresa responsável pela administração dos cemitérios da capital, ainda não foi notificada. A Subsecretaria de Imprensa do Distrito Federal disse que a Secretaria de Justiça do Distrito Federal, responsável pelos assuntos funerários, também não foi acionada e que a Polícia Civil, que é o órgão que fará a exumação do corpo, não vai se manifestar porque o caso está em segredo de justiça.
A exumação foi determinada pela 2ª Vara da Família do Distrito Federal, a pedido de um homem que alega ser filho do ditador paraguaio, em ação que corre sob sigilo. O Tribunal de Justiça do DF e dos Territórios (TJDFT) disse que não comenta o caso por este motivo. O advogado Ricardo Oliveira, que representa o possível filho de Stroessner, foi procurado mas não atendeu nem retornou o contato do Correio.
Quem foi Alfredo Stroessener
Alfredo Stroessner foi um dos mais cruéis líderes políticos que existiu nas Américas. O general foi presidente do Paraguai por 35 anos e responsável pela mais longa ditadura da região, conforme explica o professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Marcus Vinicius Xavier. “Stroessner foi o mais longevo ditador militar na América do Sul. Seu governo começa em 1954 e se estendeu até 1989, quando ele foi apeado do poder por manifestações populares, ao lado de muitas outras circunstâncias, em especial uma grave crise econômica, levaram a seu sogro, o Gal. Andrés Rodrigues, a dar um golpe de estado", afirma.
A derrocada de Stroessner é marcada por um reviravolta que incluía, além de contornos militares, questões familiares. “Resultou de um golpe de Estado dado pelo general Andrés Rodríguez, sogro do filho de Stroessner que também chamava-se Alfredo e era oficial da Força Aérea. O velho ditador preparava esse seu filho para sucedê-lo no poder, entrando em conflito com lideranças tradicionais do Partido Colorado que apoiaram Rodríguez no golpe contra o seu protetor, Stroessner”, explica o professor de História da América da Universidade de Brasília (UnB) Francisco Doratioto ao Correio.
O opositor ganhou força e apoio, após 35 anos de Stronato, período como ficou conhecida a ditadura de Stroessner. Anos marcados por violência, estupros, violação de vários direitos adquiridos, desaparecimento de pessoas, especialmente meninas de menores de 15 anos. O ex-presidente do Paraguai foi responsabilizado pelo estupro e rapto de milhares meninas. “Stroesenner foi acusado de ser uma estuprador em série de meninas entre os 11 e os 15 anos. Seus oficiais sequestram meninas em comunidades pobres e levavam para sua fazenda, onde eram estupradas por ele e sua trupe”, detalha o professor Marcus Vinicius Xavier.
Algumas das violências cometidas pelo ex-presidente do Paraguai viraram obras como o livro Uma Rosa e Mil Soldados, de Julia Ozorio Gamechoe, que aos 13 anos foi tirada de sua casa pelos militares para virar escrava sexual de Stroessner.
Além de rapto e estupro, o ditador foi acusado de violar de vários direitos humanos. “O caso mais famoso foi a descoberta, em 1992, dos chamados "arquivos do terror". Conjunto de documentos encontrados numa delegacia da periferia de Assunção e que comprovaram a existência da Operação Condor, liderada pelo Chile de Pinochet e envolvendo os países do Cone Sul”, pontua a historiadora e professora da Faculdade de Ciência da Informação da UnB Georgete Medleg Rodrigues. Os documentos provam também que o regime de Stroessner torturou, estuprou e matou utilizando a estrutura governamental.
Diante de tal histórico, Alfredo Stroessner não poderia construir um legado positivo ao país que presidiu. O professor de análises e cenários futuros da Fundação Dom Cabral e CEO da Consultoria Dharma, Creomar de Souza, explica que o ditador se manteve na presidência do Paraguai fraudando as eleições. “Durante esse tempo, em termos de política interna, foi um centralizador, um autocrata, que criou mecanismos ficcionais de perpetuação no poder, não dá nem para dizer que ele criou um arranjo que fosse minimamente democrático. Ele fraudou eleições e se utilizou de seu partido, Partido Colorado para se perpetuar no poder. O legado dele em termos de Paraguai não envolve uma melhoria significativa em termos de qualidade de vida da população, muito ao contrário, havia uma enorme preocupação para que os membros do regime fossem beneficiados pelas decisões dele e isso não envolvia melhoria para a população como um todo.”
Depois de ser deposto, Alfredo Stroessner fugiu do Paraguai e buscou exílio para que pudesse viver sem pagar pelos crimes que cometeu. As boas relações dele com o Brasil, fortalecidas especialmente com a construção da usina de Itaipu, ajudaram a escolher o destino.
Porque o Brasil ?
Enquanto líder do Paraguai, Alfredo Stroessner manteve aquele país próximo ao governo brasileiro. Foi sob seu comando que os dois países se uniram para a construção da hidrelétrica binacional de Itaipu -- que até os dias atuais é uma das maiores geradoras de energia no mundo -- conforme explica o professor de história da América da Universidade de Brasília (UnB) Francisco Doratioto. “Desde que ascendeu ao poder no Paraguai, em 1954, ele distanciou o seu país da Argentina e aproximou-o do Brasil, que o apoiou. A construção da represa hidrelétrica de Itaipu nas décadas de 1970 e 1980 foi a maior realização nas relações bilaterais e dinamizou a economia paraguaia, até então modesta. Com isso, ele criou fortes relações com políticos e militares brasileiros e sempre vinha a nosso país, participar de feira de gado em Minas Gerais e para outras atividades.”
A proximidade de Stroessner com o Brasil fez com que após o fim de sua ditadura, ele viesse para cá. Ao ditador, foi dado asilo político. À época, o país era presidido por José Sarney, com quem o Stroessner tinha uma relação amigável.“O recurso ao pedido de asilo político no Brasil era natural e o governo Sarney concedeu-o por ser uma tradição do Direito interamericano e também por tratar-se de um aliado no jogo geopolítico regional”, frisou Doratioto.
O acolhimento oferecido a Stroessner ajudou a manter as boas relações entre o Brasil e o Paraguai, como complementa o cientista político Paulo Kramer. “O Paraguai, em razão da história e da geografia, sempre foi uma prioridade para as políticas externa e de segurança nacional brasileiras. A construção de Itaipu só fez aumentar essa importância. O governo Sarney atendeu rapidamente ao pedido de asilo de Stroessner para evitar o prolongamento de uma crise nesse importante e sensível vizinho, o que deixaria preocupados militares e diplomatas, sobretudo por conta da dependência do parque industrial da Região Sudeste em face da energia elétrica de Itaipu.”
O professor de análises e cenários futuros Creomar de Souza comenta que o exílio no Brasil garantiu que Stroessener pudesse manter uma vida tranquila, longe das acusações que pesavam sobre ele. “Aqui ele consegue ser aceito para viver e não sofrer nenhum tipo de processo ou algo do gênero e parece ter uma vida que em determinado sentido é bastante reclusa até o fim.”
Quem critica a recepção brasileira ao ditador é o coordenador da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced) Djalma Costa. “Enquanto brasileiro e cidadão e militante das causas da infância e da adolescência, eu lamento muito que este homem tenha encontrado guarida no Brasil e tenha passado o resto da sua vida aqui neste país. O levantamento que se tem hoje de 1,6 mil vítimas de Stroessner não é algo que podemos afirmar. Imaginamos que pode ser muito maior o número de vítimas que ele fez. Stroessner devastou sua própria sociedade, seu próprio país para se manter no poder.”
Djalma pontua que, à época, a situação causou desconforto na sociedade brasileira, que também estava se despedindo recentemente de um regime anti-democrático. “A estadia dele não era tranquila para um país que estava saindo de uma ditadura militar. E como ele foi expulso de seu país, então, isso também não era tranquilo na sociedade brasileira, portanto não se registra o que ele está fazendo e como ele está fazendo. Ele ficou esquecido. Tanto é que, depois de 1989, quando ele chegou aqui, só vai se lembrar dele quando ele morre, em 2006. Ninguém nunca lembrou que ele estava aqui.”
Stroessner era casado e teve três filhos com a esposa Eligia Morato. No entanto, notadamente, o ditador teve várias amantes. No dia seu velório, em 17 de setembro de 2006, compareceram duas mulheres chamadas Estela e Tereza, que seriam filhas de María Estela com Stroessner. Maria é uma das famosas amantes de Stroessner, que se destacou ainda mais após lançar uma obra sobre seu romance com o ditador. O livro, Mi Vida con el Presidente Stroessner, foi lançado em 2008 e não tem tradução para o português.
Outra amante que se mostra importante na história do ditador, mesmo após sua morte, é Michele Fleitas. O noticiário paraguaio publicou em 2016 que esta amante, mãe de Verônica, Gisela e Enrique, começava a mover uma ação na Justiça para resgatar uma herança de aproximadamente 20 milhões de dólares para ela e seus filhos. O caso de Michele com o ditador teria começado nos anos 1970, antes mesmo deve vir para Brasil.
O que Stroessner fez em Brasília?
Antes de vir a Brasília, Strossener esteve em São Paulo, mas ele não gostou da agitação da cidade e quis se mudar para Brasília. Cidade que ele já tinha visitado enquanto ainda era um canteiro de obras a convite de Juscelino Kubitschek. Aqui, ele viveu por 17 anos em duas casas distintas no Lago Sul, uma na QI 9 e uma na QL 12. Todas as fontes consultadas pelo Correio declararam que o período em que Alfredo Stroessner viveu em Brasília foi tranquilo. Não foram localizadas notícias ou outros registros que associam o nome dele a crimes ou escândalos em solo brasiliense.
Ele não comparecia a eventos políticos ou reuniões sindicais, mas, segundo a professora Georgete Medleg, eventualmente recebia integrantes do Partido Colorado em sua mansão no Lago Sul. Informação corroborada pelo professor Francisco Doratioto. “Ele recebeu políticos paraguaios apenas ocasionalmente e de forma discreta.”
Na ocasião de sua morte, o Correio conversou com vizinhos e parentes de Stroessner. A reportagem publicou que o ditador era assíduo frequentador de três distintas igrejas católicas na região onde morava e sempre ia às quartas-feiras, quando há menos fiéis nas celebrações. Também foi relatado que ele só saía de carro e sempre acompanhado de um segurança paraguaio. Na QI 9 do Lago Sul, sentava-se à sacada e passava bom tempo observando as crianças da creche vizinha à sua casa. Depois, se mudou para uma casa térrea por conta das dificuldades de mobilidade adquiridos com a idade.
“Stroessner era extremamente discreto e cumpria as condições exigidas de um asilado político: abster-se de atividades políticas. Ele foi, digamos, um asilado político exemplar e viveu recluso com seu filho Alfredo, durante os anos em que viveu em Brasília. Comenta-se que saía de casa somente para tomar sol perto do Lago Paranoá e que gostava de assistir ao Show da Xuxa”, revelou o professor Francisco Doratioto.
A esposa de Stroessner morreu seis meses antes do ditador, no Paraguai. Stroessner morreu aos 93 anos em 16 de agosto de 2006 pesando 45 quilos depois de dois dias entubados em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de um hospital particular de Brasília. Ele teve uma parada séptica após sofrer complicações de uma cirurgia de hérnia.
O corpo de Stroessner foi enterrado em cerimônia com sem a presença de autoridades políticas brasileiras e com poucos amigos e parentes. Ao ditador foi oferecido uma sepultado na ala de autoridades, no Cemitério Campo da Esperança. À época a família cogitou enterrar Stroessner no Paraguai, junto com a esposa, mas houve manifestações contrárias, inclusive do presidente que informou que não daria ao ex ditador honras de estado devido ao grave
Em entrevista ao Correio Braziliense após a morte do ditador, Gustavo Alfredo Domínguez Stroessner, conhecido como Goli, disse que avô morreu sentindo falta do Paraguai e nunca mudou suas convicções. “Ele nunca se arrependeu de nada. Atuou num momento em que o mundo era diferente, havia a Guerra Fria e ele teve de governar como mandava a política mundial”, afirmou ao Correio o neto Alfredo “Goli” Stroessner (em 2006).
No dia do enterro de Stroessner, seu neto Goli exaltou o Stronato e reconheceu a trajetória do avô. “Levamos teu nome com orgulho, seguiremos teu caminho, seguiremos sempre teu exemplo de patriotismo”, disse enquanto baixava o caixão coberto com as bandeiras do Paraguai e do Partido Colorado.
Em que pese o elogio ter vindo do neto, a figura de Stroessner inspira confiança a outros líderes políticos. No dia de sua morte, a sessão da Câmara dos Deputados do Paraguai teve que ser suspensa após uma confusão que começou em um pedido de homenagem ao ditador. O então deputado Juan Vicente Ramírez propôs um minuto de silêncio pela morte do general, mas os opositores deixaram o local.
O professor Creomar de Souza destaca que os países da América Latina ainda não têm o distanciamento temporário necessário para avaliar as ditaduras aqui instaladas. “Sem sombra de dúvidas ele deixa um legado bastante controverso no Paraguai. E se some a isso ao ambiente da américa latina que ainda não conseguiu fazer uma leitura exata ainda - a maioria dos países - uma leitura exata e sem paixões desse período autoritário.”
Em fevereiro deste ano, a figura de Alfredo Stroessner foi exaltada pelo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Durante evento de posse da nova diretoria de Itaipu, Bolsonaro disse que o empreendimento só deu certo “porque do outro lado havia um homem com visão, um estadista que sabia perfeitamente que seu país, o Paraguai, só poderia continuar progredindo se tivesse energia. Então, aqui está minha homenagem ao nosso general Alfredo Stroessner”.