Correio Braziliense
postado em 28/07/2020 06:00
O amor pela literatura e pela escrita é a matriz e um projeto inédito na capital federal. Com o objetivo de selecionar textos autorais para uma publicação de coletânea de contos, crônicas e poesias, a iniciativa tem o objetivo de dar visibilidade para autores cegos e de baixa visão. Apenas pessoas com deficiência visual poderão participar da seleção que segue até o dia 30. A obra final será disponibilizada, gratuitamente, em formato ebook pelas plataformas on-line de livrarias nacionais e internacionais, além do livro impresso que será distribuído nas bibliotecas e centros culturais de Brasília.
A ação faz parte da oitava edição da Mostra de Literatura — Ocupação e Inclusão, realizada na Biblioteca Braille Dorina Nowill, em Taguatinga, e coordenada pelo agente literário Andrey do Amaral, 44 anos. Com patrocínio do Fundo de Apoio à Cultura (FAC), o projeto quebra preconceitos. “O nosso propósito é que eles sejam vistos como escritores, que tenham essa oportunidade de contar para o mundo a percepção deles”, destaca Andrey.
Aproximadamente, 300 textos foram inscritos até agora, o que surpreendeu o idealizador. “Inicialmente, a seleção dos trabalhos estava voltada para os frequentadores da biblioteca Dorina Nowill. Com a divulgação e a adaptação durante a pandemia com o formato virtual, o projeto cresceu e saiu do Distrito Federal. Atualmente, temos textos de várias regiões do Brasil e também dos Estados Unidos”, ressalta o idealizador.
Para a estudante de letras Laís Maria Moreira de Sousa Maia, 18, a oportunidade de participar da iniciativa é como um sonho. “É como se fosse uma história de contos de fadas real. Quando você almeja algo além de suas possibilidades e poder alcançá-lo, é um conto além da imaginação”, afirma a brasiliense que tem baixa visão, é deficiente auditiva e também foi diagnosticada com a síndrome de Asperger. Laís destaca que ela mesma se considera um milagre, e que um dia quer escrever um livro sobre esse milagre. “Quando nasci, peguei uma bactéria e deu endocardite (infecção no revestimento interno do coração). Perdi o macular do olho, a minha audição e um pouco do meu hipocampo esquerdo. Os médicos falaram que eu não iria me desenvolver, não aprenderia a escrever, poderia até falar, mas não iria chegar nessa evolução de escrever e pensar. Eu sou um milagre”, relata.
Estudiosa e com paixão pela leitura, Laís revela que escreveu um conto sobre a percepção e vivência da vida dela. “Minha inspiração veio de livros como Pequeno príncipe, Poliana, Peter Pan, entre outros. Eu pensei e analisei: se todos têm uma história, por que não contar a minha?”, questiona. Com o sonho de se tornar professora, ela está ansiosa com essa seleção e torce para ter seu texto publicado na coletânea.
Filha de escritor, Sheila Maria Guimarães de Sá, 55, conta que o gosto pela literatura iniciou na infância. Cega desde os 28 anos, quando teve descolamento da retina e perdeu totalmente a visão ela é uma leitora compulsiva. “Desde pequena eu lia muito, meu pai sempre comprava livros e, quando não conseguia ler, ele lia para mim. Na adolescência eu comecei a escrever histórias, tive um poema publicado. Mas tem muito tempo que não escrevo, foi bom ter essa oportunidade”, relata. “O livro abre um outro mundo, um universo do autor que você mergulha. Para mim, projeto representa inclusão, superação e desmistificação da deficiência em si. Não é uma cegueira ou a baixa visão que nos faz diferente. A literatura e a oportunidade de publicação nos coloca par em par”, ressalta.
Com a vivência na Biblioteca Braille Dorina Nowill, Sheila escolheu falar sobre sua vivência com os livros e o que a biblioteca significa para ela. Um espaço de inclusão, com obras literárias acessíveis que possibilitou ela viajar em outros mundos e culturas. Bibliotecária e massoterapeuta, Sheila explica que, com a dificuldade de redigir, mandou o texto em áudio para a transcrição. “Foi uma forma que eu encontrei para poder participar e contribuir com o projeto”, afirma.
O sentimento de gratidão com a Biblioteca Dorina Nowill também é tema do texto enviado pelo servidor público Leonardo Antônio Moraes Filho, 42. Ele perdeu a visão aos 12 anos de idade e encontrou nos livros um novo universo. Com apoio da família e de pessoas próximas ele se adaptou, aprendeu braille, concluiu os estudos e, atualmente, repassa o conhecimento para outras pessoas com deficiência visual. Trabalhou durante 20 anos na biblioteca e o espaço ganhou um carinho na memória de Leonardo. “Foi um trabalho que me trouxe satisfação. Da forma que eu fui acolhido e a importância que aquele espaço representa para as pessoas com deficiência visual. Com toda essa bagagem eu resolvi falar sobre a gratidão que eu tenho pela biblioteca”, relata.
Para além da capital federal, a iniciativa ganhou adeptos com representante de Santa Catarina. Michelle Belattu, 38, mora em Florianópolis e ficou sabendo do projeto através de uma publicação nas redes sociais. “Vi o anúncio em um grupo no Facebook, achei interessante e decidi participar”, conta Michelle que tem baixa visão. Ela ficou surpresa por saber que a iniciativa era no Distrito Federal. “Cheguei a mandar mensagem para saber se poderia participar. Fiquei muito feliz quando a resposta foi sim. A gente está vivendo coisa que antes não vivia, o ano de pandemia nos permitiu isso. Ampliar o acesso”, pontua.
Para o professor Antônio Leitão, 62, consultor do projeto, essa iniciativa tem um peso muito grande. “Vai dar vez e voz para as pessoas com deficiência visual e que tem informação de qualidade para repassar. É uma oportunidade de revelar talentos, expor autores e dar a oportunidade de entrar no mercado literário”, afirma. Ele é cego de nascença e relata as dificuldades e preconceito que existem na sociedade. “O projeto vai trazer à tona muitas questões sobre a visão de mundo e de alma. É um momento ímpar”, destaca.
A seleção contará com uma curadoria de escritores que vão escolher cerca de 50 textos para a coletânea que será publicada até o final do ano nas edições impressa e em ebook, de acordo com o idealizador do projeto, Andrey do Amaral. “Temos trabalhos que dá para cinco livros. Quem sabe a gente não consegue fazer uma segunda edição, com outros textos”, avalia. A proposta é publicar mil exemplares impressos em tinta e disponibilizar a versão digital para download gratuito em livrarias e plataformas literárias.
Atenção
Seleção de textos de autores cegos e de baixa visão
Informações: (61) 9 8457-7131
mostradeliteratura@gmail.com
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