Motociclista, entre 19 e 40 anos e ensino médio completo. Desempregado por causa da pandemia do novo coronavírus, recorreu à profissão de entregador como única alternativa para garantir o sustento da família. A renda média não passa de R$ 2,1 mil, e boa parte não tinha experiência em delivery antes da covid-19. Além disso, poucos concordam com as taxas impostas pelas empresas do sistema de entregas por aplicativo.
Os dados da pesquisa da Associação dos Motoboys Autônomos e Entregadores do Distrito Federal (Amae/DF), realizada entre abril e junho, revela o perfil dos responsáveis pelo serviço na capital (veja No detalhe). O estudo, feito com 103 entregadores, também serve como sustentação para a entidade que os representa cobrar melhorias na estrutura empregatícia. “Com a pandemia, aumentou o número de entregadores e de trabalho. Esperávamos mais valorização, mas não é o que acontece na prática”, reclama o presidente da Amae/DF, Alessandro Sorriso.
Essenciais para manter o isolamento exigido pela pandemia, mas sem respaldo e expostos à covid-19, a categoria chamou a atenção do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (UnB). A médica do trabalho e sanitarista Maria da Graça Hoefel coordena o Grupo de Pesquisa Trabalhador Delivery em Tempos de Pandemia Covid-19. “Esse trabalhador não tem contrato, não tem previsibilidade de salário nem de carga horária. Além disso, o aplicativo se apropria de 25% a 30% do valor do trabalho. Ele fica totalmente à disposição do app para sobreviver”, denuncia Maria da Graça.
O levantamento desenvolvido pela pesquisadora e por sete estudantes, a maioria do Departamento de Saúde Coletiva da UnB, investiga as relações e as condições de trabalho de entregadores em seis países com altos índices da covid-19. São eles: Brasil, China, Itália, Espanha, França e Estados Unidos. “Na Europa, por exemplo, já sabemos que esse trabalhador é tratado de forma diferente do que aqui no Brasil. Ele é essencial para o isolamento social, está exposto e corre um risco imenso”, avalia a especialista.
Após três meses de trabalho, as informações coletadas servirão como base para formular orientações voltadas a aumentar a segurança de quem trabalha com delivery. “As recomendações serão fundamentais para o desenvolvimento de políticas públicas para esse tipo de serviço. As empresas precisam, entre outras obrigações, assumir a responsabilidade, fornecer equipamentos de proteção e possibilitar a higienização dos entregadores e dos espaços em que eles ficam”, assinala Maria da Graça.
Lacunas
O professor Alexandre Loureiro, coordenador do MBA em Negócios Disruptivos do Centro Universitário Iesb, avalia que a situação dos entregadores piorou desde a proliferação do novo coronavírus. “Sempre que aparece um modelo de negócio para preencher lacunas, ocorre algum tipo de estresse. Antes da covid-19, havia menos concorrência e se ganhava mais. A renda caiu depois da enxurrada de pessoas desempregadas e sem qualificação absorvida pelo delivery. As pessoas devem ser capacitadas para sempre buscar novos caminhos”, explica.
Para o especialista, as empresas de entrega por aplicativo têm, neste momento, uma oportunidade para melhorar a imagem. “Seria possível, por exemplo, liberar no sistema de todas elas a chance de o consumidor dar uma gorjeta? Paga-se 10% para o garçom, por que não para o entregador, que, atualmente, corre até mais risco em relação ao coronavírus? Tudo isso pode ajudar a motivar e a melhorar as relações de trabalho”, sugere Alexandre. A gorjeta é uma realidade em quatro dos cinco aplicativos em atuação no DF.
De bicicleta, a entregadora Aline Henning, 26 anos, associada à ONG Rodas da Paz, vive há cinco anos a rotina do delivery na capital federal. E reclama das dificuldades impostas pelas empresas e pela profissão. “Muitos não conseguem cumprir a pontuação exigida pelos aplicativos e acabam sendo punidos. Também não pode ficar doente, não pode receber baixa avaliação. Qualquer coisa é motivo para punição. Falta transparência. O tratamento deveria ser mais humanizado”, defende a moradora da Asa Sul.
Multas
No dia a dia, os entregadores também ficam expostos a acidentes. Algumas vezes, pela pressão imposta por entregas rápidas, mas também por inexperiência no trânsito. Além disso, muitos não fizeram o curso regulamentado pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran), uma exigência da lei. “O que vemos nas ruas é que muitos desempregados se deslocaram para esse trabalho. Muitos estão despreparados e usam motos que estão fora dos padrões”, alerta o diretor de Educação de Trânsito do Detran no DF, Marcelo Granja.
Por meio da Operação Sossego, o Detran aplicou 1.042 multas contra motociclistas no primeiro semestre. Nesse total, há infrações por barulho excessivo no escapamento e falta de habilitação específica, mas os agentes aproveitam a blitz especial para cobrar da categoria os equipamentos de segurança e verificar irregularidades na motocicleta. “Fazemos um trabalho punitivo, mas, também, educativo. Muitos não têm capacitação para o trabalho e desconhecem detalhes simples do trabalho, como a falta de noção do que é transportar líquido, por exemplo”, explica Marcelo.
No próximo sábado, em 25 de julho, a Amae/DF organizou o 2º Breque Nacional, que prevê a paralisação do serviço de entregas ao longo do dia. A concentração será no estacionamento da Torre de TV, a partir das 9h. O primeiro ato ocorreu em 1º de julho em todo o Brasil. No Distrito Federal, o protesto reuniu 500 trabalhadores da categoria na Esplanada dos Ministérios.
- Atenção à categoria: Em 31 de março, o Ministério Público do Trabalho (MPT) emitiu uma recomendação às secretarias de Saúde e de Transporte e Mobilidade do Distrito Federal para cobrar atenção especial à categoria. No documento, a Procuradoria Regional do Trabalho da 10ª Região defendeu a necessidade de reconhecimento de vínculo empregatício entre os entregadores e as empresas digitais. Considerando que esses profissionais têm atuado “de forma precária e vulnerável”, principalmente durante a pandemia, os procuradores elaboraram 10 pedidos para respaldar os empregados diante da possibilidade de aumento da demanda nos meses seguintes.