Cidades

Risco e sobrevivência sobre duas rodas

No primeiro capítulo da reportagem especial sobre as condições de trabalho dos entregadores do Distrito Federal, o Correio detalha o dia a dia da profissão, a relação com as empresas de aplicativo e as principais reclamações da categoria

Correio Braziliense
postado em 19/07/2020 04:08
No primeiro capítulo da reportagem especial sobre as condições de trabalho dos entregadores do Distrito Federal, o Correio detalha o dia a dia da profissão, a relação com as empresas de aplicativo e as principais reclamações da categoria

No comando da motocicleta ou sobre os pedais da bicicleta, os entregadores ganharam destaque especial na pandemia do novo coronavírus. O serviço prestado por meio de aplicativos de delivery tornou-se essencial para manter muita gente em casa e evitar a disseminação da covid-19. Além disso, absorveu parcela significativa de pessoas que ficaram desempregadas com o fechamento de diversas atividades. No entanto, a crise desencadeada no início da quarentena aumentou a concorrência e empurrou para o trânsito mão de obra com pouca ou nenhuma experiência, formação ou habilidade sobre duas rodas.

A mudança no perfil da profissão levou a categoria a denunciar piora nas condições de trabalho e exploração por parte das empresas. Mobilizados por sindicatos e associações, motoboys e ciclistas paralisaram as entregas em todo o país, em 1º de julho. Em Brasília, cerca de 500 reuniram-se na Esplanada dos Ministérios para reivindicar autonomia e direitos básicos. A cobrança continuará em 25 de julho, com pedidos de fim dos bloqueios pelas plataformas, transparência na forma de remuneração, aumento das taxas por quilômetro percorrido e responsabilidade dos aplicativos por eventuais acidentes e infecções pela covid-19.

Para entender os riscos, as falhas, o estresse e os gargalos do serviço, o Correio saiu às ruas do Plano Piloto, do Sudoeste e de Taguatinga por três dias. Pela manhã, à tarde e à noite, a reportagem acompanhou a rotina e as dificuldades dos entregadores no tráfego do Distrito Federal. A história de quatro deles será contada nesta edição, cada uma acompanhada de estatísticas, análises de risco e normas técnicas relacionadas ao delivery na capital do país.


Rotina começa na madrugada

São 5h30. A essa hora, durante o inverno, a luz matinal sequer delineia os contornos de Ceilândia. Na região administrativa mais populosa do Distrito Federal, milhares de pessoas partem para o batente. Uma delas apronta-se silenciosamente. De capacete, tênis, jeans e jaqueta reforçada, a técnica de enfermagem Cindy Kemilly Silva, 24 anos, monta a Yamaha Fazer laranja de 150 cilindradas e corta o asfalto por 11km. Hospitais e postos de saúde atravessam-se pelo caminho, mas o destino da jovem profissional da saúde é outro.

No Pistão Sul, Cindy junta-se a cerca de 50 outros motociclistas. O grupo aguarda o repasse da primeira leva de entregas em frente ao galpão de uma empresa de delivery. As chances de conquistar corridas mais lucrativas são maiores para quem chega cedo. Em dias bons, Cindy acomoda 30 pacotes no baú da moto e roda até 100km em seis horas. Mesmo assim, o esforço é pouco recompensado. “Fico bem cansada para ganhar R$ 60, R$ 80. Tem gente que tira R$ 200, mas trabalha o dia inteiro. A demanda está alta (com mais entregadores na rua) e, financeiramente, o retorno é cada vez menor”, lamenta.

Antes da labuta, a fome não vem. O que deveria ser café da manhã acontece, muitas vezes, só na hora do almoço. “Como apenas uma banana antes de sair de casa. Minha segunda refeição é às 10h. Isso quando dá tempo de comer ou tomar água”, conta. Nesse período, Cindy garante entregas de Brazlândia a Planaltina. A rotina no asfalto, cercada de estresse, pressão e risco, repete-se há pouco mais de dois meses. Sem oportunidade para atuar na área de formação, a jovem embarcou no ramo do delivery. “O meu sonho é ser bombeira. Vou correr atrás disso.”

Enquanto a farda não vira uniforme, roupa apropriada e equipamentos de segurança compõem o figurino de Cindy. Máscara também, mas a proteção deixa a respiração desconfortável. A jovem sofre de bronquite e acha mais seguro encarar as ruas do que os corredores de um hospital na pandemia. “No calor, a gente sua, e o motor da moto fica quente. Com a chuva, viseira, óculos e pochete do celular embaçam. Não dá. Mas a gente tem de dar um jeito de conquistar o que quer”, afirma. “É corrido, perigoso, mas a fome e as contas não esperam”, sentencia.

  • Cindy Kemilly Silva está entre os até 12 mil entregadores da capital. Sobre duas rodas, seja de moto, seja de bicicleta, a categoria reclama das condições de trabalho e da relação com as empresas — na capital, há cinco em atuação: Rappi, iFood, Uber Eats, Loggi e James Delivery. “O nosso sofrimento é comum. Cada app exige exclusividade e tem um sistema diferente de pontuação, score, avaliação, gorjeta. Queremos ser autônomos, de fato. Esperávamos que fôssemos valorizados, pois a nossa importância aumentou na pandemia”, ressalta Alessandro Sorriso, presidente da Associação dos Motoboys Autônomos e Entregadores do Distrito Federal (Amae/DF). Segundo ele, a categoria reivindica uma legislação específica para o serviço de delivery. “Não queremos CLT, mas que as empresas acabem com bloqueios injustos e cobrem as taxas corretas. Tratam a gente como descartáveis”, critica.

 

Alta demanda no almoço

No momento em que Cindy retoma o rumo de casa para cuidar do filho pequeno, Renivan Lima, 29 anos, cumpriu a metade das corridas do dia. Ele trabalha no horário do almoço, um dos períodos mais frenéticos para quem entrega comida. Entre as 10h e as 14h30, o motociclista percorre bairros de classe média e alta. A rota inclui Plano Piloto, lagos Sul e Norte, além da Octogonal e do Sudoeste. Renivan mora em Luziânia (GO), a 60km de tudo isso.

O motoboy prefere os turnos fixos. Nessa modalidade, ele tem direito a um dia de descanso por semana e a uma folga mensal no domingo. Contudo, há restrições. Em caso de imprevistos, não é possível deixar o expediente na última hora. E, se houver descumprimento da carga horária, a empresa cobra multa de até R$ 90 pela jornada incompleta. Assim, quando trabalha das 10h à 0h, Renivan mal consegue ver a mulher e o filho, de 2 anos. Ao voltar para casa, ambos estão dormindo. Mas, entre um pedido e outro, o entregador consegue um momento para pensar na família e nos planos de ser policial militar.

Por causa da pandemia, não é mais possível buscar entregas nos restaurantes dos shoppings. Renivan e outros tantos entregadores aguardam em uma área externa — ou no subsolo —, até que várias refeições fiquem prontas de uma vez. “O primeiro a chegar acaba se dando mal. Perdemos tempo. Esperávamos que, por ter muito delivery por aplicativo, agora, as coisas fossem mais rápidas”, comenta. “E temos um período para chegar ao restaurante. Senão, a corrida some da tela. Além de ela ir para outro entregador, ficamos uma hora sem receber novos pedidos”, reclama.

A depender da época, o prazo coloca os profissionais à mercê do sol a pino ou dos temporais. Nem sempre jaqueta, botas e luvas são suficientes. Necessidades básicas ficam de lado por causa da pressa. “O que mais pesa é a carga horária, que é alta, além da dificuldade que temos de ir ao banheiro, almoçar ou quando está muito frio”, relata. “Eu trabalhava como motorista em uma empresa de metais, mas passaram por uma fase difícil e me demitiram. Comprei uma moto usada e comecei a trabalhar com entregas, porque foi o que achei”, justifica.

  • Renivan Lima ganha a vida arriscando-se sobre duas rodas. Desde 2010, as mortes de motociclistas são maiores do que os óbitos em automóveis. No período, 921 pessoas que pilotavam ou seguiam na garupa desses veículos envolveram-se em acidentes fatais até julho de 2020, segundo dados do Departamento de Trânsito (Detran). Além disso, desde 2000, jamais a capital fechou o ano com mais mortes de motociclistas do que de pedestres. Mas, até o início deste mês, a estatística mostra uma tendência de mudança nesse cenário. Vinte e oito motociclistas morreram. São três óbitos a mais do que de pedestres. Parte dessa situação explica-se pela alta do serviço de delivery por causa da pandemia e da falta de capacitação. “A atividade cresceu no período e é realizada, muitas vezes, por pessoas despreparadas”, afirma Marcelo Granja, diretor de Educação de Trânsito do Detran.


Tarde com menos movimento


As manchas de graxa na calça de José Gregório Lopez Nieves, 35 anos, entregam as horas dedicadas sobre o selim da bicicleta. O venezuelano sai de casa por volta das 10h, pouco depois da primeira refeição do dia — a próxima será só à 1h, ao retornar para o lar, no Recanto das Emas. “Estou acostumado. Na Venezuela, passamos fome. Aqui, não”, compara. Nascido na cidade de El Tigre, no estado de Anzoátegui, José Gregório veio para o Brasil, em 2018, como refugiado. No ano passado, mudou-se para a capital federal.

A oportunidade como entregador de aplicativo surgiu por causa da pandemia. Antes disso, o mecânico trabalhava como eletricista na obra de uma escola particular, na Asa Norte. A crise chegou, os colégios fecharam, famílias suspenderam o pagamento de mensalidades e a construção parou. José Gregório, a mulher e os três filhos precisavam de um sustento com urgência — outros dois, mais velhos, ficaram na Venezuela e dependem do dinheiro enviado pelo pai. Assim, o delivery se impôs como opção.

À tarde, o movimento é menor. Pelas vias do Plano Piloto, do Sudoeste ou do Setor de Indústria e Abastecimento (SIA), um casaco e um boné ajudam a amenizar os efeitos do sol. No rosto, a máscara serve de barreira contra o vírus. José Gregório pedala em uma bicicleta com motor improvisado. Diariamente, ele gasta de R$ 15 a R$ 20 para colocar gasolina em um pequeno tanque instalado sobre o quadro. O combustível facilita a viagem de 30km entre o Recanto das Emas e o Plano Piloto. No restante do tempo, ele pedala mais de 100km para buscar e entregar os pedidos.

Quando atende a uma média de 15 chamados, José Gregório tira R$ 60 por dia. A família também conta com uma cesta básica concedida pelo governo. No entanto, o que o venezuelano ganha por mês mal cobre gastos com aluguel e outras despesas. Mesmo assim, ele se prende ao otimismo, na torcida de que a situação melhore. “Se nem eu nem ninguém nos cuidarmos, a pandemia não vai acabar nunca. E quero que ela passe rápido, para eu arrumar um emprego formal. Está muito difícil para todo mundo”, desabafa.

  • José Gregório Lopez nieves trabalha em uma profissão regulamentada por uma lei sem valor prático. “Hoje, está tudo ao Deus-dará. Com a aprovação da Lei nº 12.009, de 2009, achávamos que teríamos a mesma organização dos vigilantes, mas não é o que acontece. Há omissão. As empresas contratam qualquer um”, critica o presidente do Sindicato dos Motociclistas Profissionais do DF (Sindmoto), Luiz Carlos Galvão. A norma estabelece idade mínima para motoboy ou mototaxista — 21 anos —, os itens de segurança obrigatórios e a exigência de um curso especializado, regulamentado pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran). “A maioria dos empresários não dá condições. Não temos dinheiro para comprar os equipamentos. E quem deveria fiscalizar não o faz”, lamenta.



Compromisso até a meia-noite


Chega o último turno. A lua, minguante e alaranjada, típica da seca, surge por trás dos prédios da Asa Norte. As ruas do centro de Brasília têm menos carros durante a pandemia. Mas há entregadores por toda parte. O Correio acompanha uma de perto. No comando da bicicleta, Anna Rafaella Tschiedel Berg, 26 anos, cruza entrequadras, comerciais, Eixão e tesourinhas. É o início do expediente. Quando os pedidos levam até duas horas para aparecer, ela encerra o dia. Mas, se tudo dá certo, a demanda só termina à 0h.

No inverno de clima desértico, o frio noturno gela até os mais acostumados. Anna Rafaella carrega dois casacos, por precaução. Eventualmente, uma capa de chuva. Além disso, há sempre uma garrafa de álcool em gel na parte externa da mochila térmica, onde acomoda os alimentos. O uniforme inclui tênis, calça comprida, camiseta, capacete e máscara. As roupas são confortáveis, para o caso de a jovem ter de pedalar. Mesmo elétrica, a bicicleta exige fôlego quando acaba a bateria de seis horas.

Anna Rafaella saiu de Formosa (GO) para estudar gestão de políticas públicas na Universidade de Brasília (UnB). Desde que se formou, no ano passado, ela se divide entre o trabalho com delivery e os estudos para concurso. “Pensei em fazer entregas para seguir na capital federal, pagar o aluguel e me virar. A minha única renda vem disso”, conta. Por semana, a jovem ganha de R$ 150 a R$ 400. Tudo depende da demanda e do tempo dedicados ao ofício. Depois que o celular recebe uma chamada de entrega, a paisagem e o compromisso com o destinatário viram companhia até o fim da jornada.

A entregadora atua em áreas próximas à comercial da 408 Norte, onde mora em uma quitinete. Em oito horas, Anna Rafaella percorre cerca de 45km. “No começo, ir de bike é empolgante. Eu fazia 60km, 70km por dia. Com o passar dos meses, dói o joelho, a perna. Então, comprei a bicicleta elétrica”, explica. “O trabalho é bom, dá para tirar um dinheiro legal. Só que a pessoa tem de gostar de ficar o dia inteiro na rua. Todas as reivindicações da pauta da última greve são válidas. Não é nenhum luxo o que pedimos. É só para ter um trabalho digno”, completa Anna.

  • Anna Rafaella Tschiedel Berg atua em um ramo imprevisível, mas com tendência a aumentar. Pesquisa promovida pela consultoria Galunion e pelo Instituto QualiBest, em maio, mostrou que o setor do delivery "ainda é um grande desafio". Entre os 754 entrevistados de todo o país, 36% disseram que os gastos com delivery subiram. Porém, houve queda com esse tipo de despesa para 39% dos participantes. Após o período de confinamento, 21% acreditam que a despesa com o serviço vai aumentar, enquanto 43% dizem que manterão o consumo como atualmente. Além disso, 68% concordam totalmente ou em parte que entregadores têm tomado cuidados de higiene durante o atendimento. “Há muito o que fazer para inovar nos negócios em alimentação”, conclui o levantamento.

O que dizem as empresas

Das cinco empresas em atuação no serviço de delivery por aplicativo no Distrito Federal, três responderam à reportagem. Por-mail, o iFood confirmou o cadastro de 170 mil entregadores no Brasil, sem dar o recorte na capital. A rede não trabalha com sistema de ranking e pontuação. "O algoritmo de alocação de pedidos leva em consideração fatores como, por exemplo, a disponibilidade e a localização do entregador, o engajamento na plataforma e a distância entre restaurante e consumidor", detalha.

Em relação à suposta falta de transparência em taxas e porcentagens, o iFood detalhou que "o valor da entrega é calculado usando fatores como a distância percorrida entre o restaurante e o cliente, uma taxa pela coleta do pedido e uma taxa pela entrega ao cliente, além de variações referentes a cidade, dia da semana e veículo utilizado para a entrega." Além disso, desde maio, todas as rotas do app têm um valor mínimo de R$ 5 por pedido.

Os entregadores do iFood recebem, desde o fim de 2019, o Seguro de Acidente Pessoal, que cobre despesas médicas e odontológicas, “bem como indenização em caso de invalidez temporária ou permanente ou óbito decorrente do acidente”. Quanto à covid-19, desde março, “foram implementadas medidas protetivas, que incluem fundos de auxílio financeiro para quem apresentar sintomas” e para aqueles do grupo de risco. Até o momento, a empresa investiu mais de R$ 25 milhões nessas iniciativas.

A Rappi conta com 200 mil entregadores cadastrados no aplicativo na América Latina. A empresa de origem colombiana informou, também por e-mail, que a cobrança de frete “varia de acordo com clima, dia da semana, horário, zona da entrega, distância percorrida e complexidade do pedido”. Dados da companhia mostram, ainda, que cerca de 75% dos trabalhadores ganham mais de R$ 18 por hora. A Rappi também permite que os clientes deem gorjeta aos entregadores por meio do aplicativo.

Além disso, a empresa trabalha com um programa de escores “criado para tanto reconhecer quanto priorizar entregadores parceiros com um melhor nível de serviço na plataforma, ao mesmo tempo em que permite equilibrar a distribuição dos pedidos versus número de entregadores parceiros logados, fazendo com que o entregador passe a ter ainda mais clareza e transparência.”

A Rappi oferece, desde o ano passado, seguro para acidente pessoal, invalidez permanente e morte acidental. “O seguro vale para todos os entregadores parceiros e qualquer tipo de veículo, incluindo motos e bicicletas”, detalhou. Em relação à pandemia, a companhia elaborou diversos protocolos, como incentivo do pagamento via app, distribuição de álcool em gel e máscaras e criação de um fundo para apoiar financeiramente os colaboradores com sintomas ou confirmação da covid-19.

Em nota, o Uber Eats informou que “todos os ganhos (com a empresa) estão disponibilizados de forma transparente para os entregadores parceiros, no próprio aplicativo, ficando clara cada taxa e valor correspondente. Não houve nenhuma diminuição nos valores pagos por entrega, que seguem sendo determinados por uma série de fatores, como a hora do pedido e a distância a ser percorrida.” A empresa adotou medidas preventivas contra o novo coronavírus, como opção de entrega sem contato, por meio do recurso “Deixar na porta”, além de ferramenta para identificar o uso de máscaras pelos entregadores, a partir de um checklist on-line, que inclui uma selfie para verificar a utilização da proteção facial.

A Loggi e a James Delivery não responderam e-mails e mensagens enviados pela reportagem, até o fechamento desta edição.

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