Sou humilde leitor e admirador da escrita engenhosa do padre Antonio Vieira, a quem Fernando Pessoa chamou de “imperador da língua portuguesa”. Certa vez, quando morava na 408 Norte e voltava para o apartamento, tive a desagradável surpresa de constatar que ele havia sido arrombado. Botei as mãos na cabeça, com a certeza: “Roubaram as obras completas de Vieira!”. A minha esposa é capricorniana e realista.
Logo, fulminou: “Não seja louco, nenhum ladrão vai roubar as obras do padre Vieira”. Repliquei: “Se fosse o Marcola (aquele meliante que leu mais de 5 mil livros), isso poderia acontecer”. Felizmente, não era. Levaram coisas supérfluas, mas preservaram Vieira. “O livro é um morto que fala, um surdo que ouve e um cego que vê”, escreveu Viera.
Por isso, assisti com espanto à proposta de derrubar a estátua de Vieira em uma das recentes manifestações antirracistas em Lisboa. Sou contra, pois parece-me que tal ato destrói a memória e não elimina o racismo. Se é verdade que Vieira se posicionou a favor da escravidão dos negros, é preciso lembrar que lutou bravamente para defender os índios brasileiros na selvageria dos tempos coloniais.
A batalha de Vieira em favor dos índios está registrada em inúmeras cartas e, principalmente, em duas prédicas: o Sermão de Santo Antônio aos peixes, pregado em São Luís do Maranhão em 1654, e o Sermão da epifania, pregado na Capela Real, em Lisboa, em 1662. No primeiro, Vieira toma como ponto de partida a recomendação de Cristo aos pregadores: “Vós sois o sal da terra”.
E continua o alerta:“Se o sal não salgar, para que servirá senão para ser lançado fora e pisado pelos homens?” Vieira revira pelo avesso o argumento de que os índios seriam antropófagos e o esgrime contra os colonizadores brancos portugueses. “Cuidais que só os tapuias se comem uns aos outros, muito maior açougue é o de cá, muitos mais se comem os brancos”.
Vieira bota o dedo na ferida do embate covarde e feroz dos grandes contra os pequenos: “São o pão cotidiano dos grandes: e assim como pão se come com tudo, assim com tudo, e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo, nem fazem do ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que não o defraudem, em que os não comam, traguem e devorem”.
A Companhia de Jesus, liderada por Vieira, ficou solitária na defesa dos índios. Os pregadores foram expulsos e se refugiaram em Lisboa. Lá, na Capela Real, Vieira proferiu o Sermão da epifania, em que vergasta duramente os portugueses colonizadores do Brasil: “Naqueles tempos, andavam sempre os portugueses com as armas às costas contra os inimigos da Fé, hoje tomam as armas contra os pregadores da Fé.”
Retoma o argumento da antropofagia dos índios para defendê-los da escravidão: “Não podemos nos sustentar doutra sorte, senão com a carne e sangue dos miseráveis índios! Então eles são os que comem gente? Nós, nós somos os que os imos comer a eles”. Era preciso muita coragem para dizer e fazer o que Vieira fez em plena barbárie da era colonial. Como diz aquela antiga canção popular, primeiro é preciso julgar pra depois condenar.